Paraíso sitiado
O drama dos índios Awá e a resistência de seu povo que tenta impedir a ação criminosa de madeireiros na Reserva Biológica Gurupi, onde o território indígena já perdeu 30% de sua paisagem original.
Reportagem: Míriam Leitão - Fotos: Sebastião Salgado
Sobreviver com coragem
Considerados um dos últimos povos caçadores e coletores do planeta, os poucos mais de 400 Awá que povoam o que restou da Floresta Amazônica no Maranhão vivem o momento mais decisivo de sua sobrevivência: impedir que grileiros, posseiros e madeireiros destruam o seu mais valioso bem. É das árvores e da mata densa situadas na Reserva Biológica do Gurupi, de onde tiram o seu alimento, a sua certeza de amanhã poderem garantir a continuação de seu povo, de sua gente. Eles não querem nada mais do que a garantia do governo federal de que não terão o seu terrítório devastado pela ganância do homem branco, que avança a passos largos em busca de madeira nobre.
Apesar de sua terra já estar demarcada, homologada e registrada com 116.582 hectares pela União, eles enfrentam uma ameaça real de assistir à destruição da floresta da qual são tão dependentes e de onde tiram o sustento de seus filhos. Ainda que a Justiça já tenha determinada a retirada desses 'intrusos' ou não índios, como define a Funai, os Awá temem pela própria sorte, se afirmam em sua coragem e não vacilam quando veem sua resistência em xeque. "Não temos medo. Vamos resistir", dizem em discursos emocionados.
Madeireiros impõem sua lei na terra dos Awá
- Em emboscadas armadas por jagunços e pistoleiros, comerciantes de madeira demostram ter mais força do que a Polícia Federal e a Força Nacional juntas, relata funcionário da Funai
A ponte estava queimando e do lado de lá do fogo estavam uns 50 homens contratados pelos madeireiros; vários deles pistoleiros conhecidos da região. Os homens apontaram suas armas para a Polícia Federal, Força Nacional, Ibama e Funai, que vinham, em comboio, trazendo abundantes provas de crime de desmatamento em terra indígena em 17 caminhões apreendidos, motosserras, motocicletas, tratores e 35 presos.
Era madrugada num povoado perdido no Maranhão com o nome de Varig. E aquilo era uma emboscada. Os madeireiros e seus jagunços levaram a melhor no confronto. O Estado brasileiro teve que recuar. O lado da lei era mais fraco do que o exército organizado pelo crime.
O espantoso fato, que hoje faz parte de relatórios, me foi contado por Claudio Henrique Santos de Santana, 49 anos, há 28 anos funcionário da Funai e, naquele momento, motorista do primeiro caminhão. Aconteceu em junho do ano passado e merece ser relatado para se entender com que desenvoltura o crime de desmatamento age impunemente no Maranhão. Os representantes do Estado brasileiro tentaram dialogar. Foi inútil. Em silêncio, com a ponte em chamas, as armas apontadas, o crime foi mais eloquente.
O dia havia começado bem cedo. Na Aldeia Juriti os índios repetiram para os policiais, com a ajuda de Patriolino Garreto — chefe do posto, na tradução da lingua guajá — que estavam ouvindo o barulho dos tratores e das motosserras na floresta.
Ninguém ouvia nada, mas ninguém duvidava. Os Awá têm uma acuidade auditiva muito superior à de qualquer outro ser humano. Eles desenvolveram, ao longo dos séculos de sua história de fuga e movimento na mata, uma capacidade de ouvir além do normal.
Escolheram dois índios mais velhos para servir de guia. Patriolino foi junto. Atrás os seis integrantes da Força Nacional, um funcionário do Ibama e três da Funai. Os três da Polícia Federal e outro funcionário do Ibama ficaram na Aldeia Juriti.
Já havia começado uma operação de prisão de madeireiros na região, na qual tinha tomado parte Hélio Sotero, que hoje está na chefia da operação de retirada dos não-índios da terra Awá. Durante a operação, chegou até ele o alerta dos índios sobre a presença de madeireiros na floresta. Assim se organizou o grupo que foi até a Aldeia Juriti apurar o que eles estavam informando.
— Viemos de Santa Inês, até a casa do seu Raimundo Porca. — contou Santana, referindo-se a um posseiro antigo, vizinho da terra indígena, que tem sido aliado da Funai.
— Mandamos a bagagem por barco e viemos a pé para a aldeia. Na manhã seguinte, saímos. Os índios na frente, e nós, a pé, atrás. Andamos 20 quilômetros pela floresta até avistarmos o acampamento. Ouvimos então o barulho da motosserra cortando as árvores e o trator de esteira fazendo o limpo para pôr as toras — descreve Claudio Santana.
Eles mandaram os índios voltarem à aldeia para não expô-los aos riscos de serem depois reconhecidos pelos madeireiros. Patriolino, com eles.
— Nós ouvimos o barulho de um caminhão se aproximando. Tinha um tronco de árvore caído e nós o colocamos para bloquear o caminho. O caminhão parou no tronco. Nós, que estávamos escondidos no mato, aparecemos e o abordamos. Estavam o motorista e o ajudante dele, o catraqueiro, que usa a catraca para pegar os troncos. Fizemos essa primeira apreensão, tiramos a tora, e fomos no caminhão, escondidos, com o motorista dirigindo para não assustar as pessoas do grupo. Quando o caminhão encostou, as pessoas vieram falar com o motorista e nós aparecemos e prendemos todos — relata Claudio.
Eram cinco pessoas no acampamento, duas motosserras, duas motocicletas cross novinhas e um trator. Os bandidos conseguiram travar o trator, mas sob a ameaça da Força Nacional foram conduzindo todos para os outros acampamentos. Foi assim o dia inteiro. Ao todo, conseguiram chegar em mais sete acampamentos. Pegaram três tratores de esteira, armas, motos, motosserras, 16 caminhões e prenderam 35 pessoas. Quatro caminhões não puderam ser levados porque os motoristas conseguiram travar o motor.
— A gente passou o dia e anoiteceu nessa operação. Ninguém parou para comer, para descansar, eram três e meia da manhã, nós estávamos viajando quando vimos na estrada um carro cheio de toras. Eram os nossos três companheiros da Polícia Federal e um do Ibama, que havia saído da Aldeia Juruti pelo outro lado e apreendido aquele caminhão. Estavam nos esperando. Aí formamos esse comboio de 17 caminhões. Nossa intenção era soltar no povoado de Varig pessoas que não tinham a ver diretamente com o crime, como a cozinheira. Ou os peões que não nos levariam aos cabeças do crime.
A próxima parada seria Buriticupu, uma famosa cidade madeireira. Depois, uma cidade maior: Santa Inês, onde deixariam os presos e o fruto do crime.
— Eu dirigia o caminhão da frente, quando entrei no povoado e avistei a ponte em chamas. Era a emboscada. Eles queimaram a ponte para nos deter e ficaram de tocaia — disse Cláudio.
O comboio dos 17 caminhões e tratores parou. Não havia por onde escapar. As autoridades tentaram conversar, outros foram verificar se dava para passar pela ponte, mas as tábuas já estavam se desfazendo.
Do lado de lá os bandidos estavam em maior número, com melhor armamento, e maiores chances. Não havia o que fazer.
Do lado de cá eram apenas os funcionários da Funai que não portam armas, dois do Ibama, e os nove integrantes da Força Nacional e Polícia Federal.
Os bandidos exigiram a soltura de todos os presos e abandono dos caminhões e tratores. Era fazer isso ou iniciar o tiroteio.
— Estávamos em menor número e não tínhamos armas suficientes. Deixamos tudo lá e fomos de carro, por outra estrada, pensando em fazer um contorno até Buriticupu para relatar o ocorrido.
A estrada levava ao povoado com o nome de Aeroporto mas não ia até Buriticupu. Eles tiveram que voltar e quando chegaram, encontraram a cidade sob toque de recolher imposto pelos bandidos, a ponte consertada com novas tábuas, os caminhões recolhidos nas serrarias e oficinas da região, e os presos já tinham sumido.
— Ficaram no chão apenas as toras de madeira na estrada jogadas de um dos caminhões.
As forças policiais tinham como prova dessa desmoralizante ação, em que o crime mostrou ser mais forte que o Estado brasileiro, os documentos dos presos, cadernos de anotações, celulares e muitas licenças de transporte de madeira emitidas pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Maranhão.
A tragédia do desmatamento atinge a terra e o céu
- ‘Sempre ouvi falar que é terra indígena, mas não sei para onde vou’, diz posseiro
Miriam Leitão
Publicado:
Povoado do Caju, Povoado Cabeça Fria, Terra Awá, Maranhão
— “O Maranhão é grande, mas tudinho tem dono”, diz José Ribamar de
Araújo que mora num dos vários povoados dentro da Terra Indígena,
justificando porque morava em área contestada num estado tão grande. Ele
admitiu que desde 1983 soube que era terra indígena. Estava na casa de
amigos. Casa de reboco onde há quatro anos mora Jardel dos Santos com
sua mulher e enteado.
— Eu estou com a idade de 36 anos e nunca fui numa escola. Eu vou lhe falar, estou dependendo do que ganho aqui. Eu trabalho na roça, trabalho para qualquer um. Sempre ouvi falar que é terra indígena, mas não sei para onde vou — disse Jardel.
Ele almoçava em pé, me ofereceu cadeira e quis dividir o almoço. Sua mulher, Edilene Alves, acompanhava a conversa em silêncio, enquanto lavava a louça. Quem domina a conversa é mesmo José Ribamar, 56 anos, inteligente, bem humorado e também analfabeto. Conta uma história que parece realismo fantástico de antigo grileiro, já morto, Gilberto Andrade, que teria pegado muita terra e um dia morreu debaixo de sua própria carreta. Estava parado num carro, quando sua carreta de madeira bateu no carro.
— Morreu, mas era devedor. Era matador, tirou muita madeira. O homem era cru mesmo. Comeu muito filho alheio — disse ele, querendo dizer com isso que o tal senhor era um assassino.
A conversa flui fácil naqueles povoados.
— Rapaz, se todo mundo sair daqui, eu saio, porque a área falada todo mundo quer ser dono. Eu sei que é terra indígena. Índio caça e nós, quando dá, às vezes mata um bichinho pra comer, mas hoje tem que andar demais para achar caça porque o madeireiro é demais e emocionou a mata — disse José Ribamar de Araújo.
Jardel, o mais jovem, é mais triste.
— Aqui é difícil, não tem luz, a água tem que buscar lá embaixo, sofrimento aqui é grande demais. Eu não tenho emprego fixo, não tenho letra, tenho que derramar o suor, se todo mundo sair eu saio, mas não é de boa vontade — diz Jardel.
Já Ribamar lamenta a falta de escola em sua vida.
— Eu vejo a senhora, que tem alta mentalidade e muita matemática. Eu queria isso.
Os dois contam que têm estradas ali feitas por madeireiros ou por prefeitos que são madeireiros. Eu saía da casa, quando ouvi a voz de Edilene.
— Se dessem uma casa pra gente a gente sai, sem ter para onde ir fica ruim.
Mais adiante no povoado Cabeça Fria abordei moradores sentados debaixo de uma grande árvore. Uma mulher de 40 anos que teve derrame no último filho e vive de bolsa família e cujos pais ainda trabalham na roça, das fazendas que ocuparam a terra indígena. Um casal de trabalhadores rurais que trabalha como meeiro participa da conversa. A mulher, Maria Antonia Pinheiro, explica a dificuldade maior do trabalho.
— É muito difícil porque a gente planta arroz e colhe, depois vem o fazendeiro e joga capim braquiária e não dá outra roça de arroz porque o capim cresce. Eles roçam meio mundo de mata e planta capim. O que acaba com o pobre é isso.
Os dois também contaram nunca terem estudado. Perguntei se eles reagiriam caso a Justiça mandasse sair, eles disseram que não.
São essas pessoas que estão sendo chamadas para participar da resistência pelos maiores fazendeiros. Eles foram para lá já sabendo que era área de conservação, mas se dizem sem opções.
Surpresas na floresta
Míriam Leitão, O GloboUm índio isolado não abre trilha quando anda na mata; ele negocia com a floresta, procurando as melhores chances de avançar. Esse é um dos sinais que as expedições conseguem captar. Por fortes indícios já testados, a Funai concluiu que existem 27 povos isolados em vários pontos da Amazônia, inclusive próximos a obras do PAC, como Belo Monte e usinas planejadas no rio Tapajós.
Desde 1987 a política brasileira mudou. Na democracia tomou-se essa decisão. Os principais indigenistas se sentaram para avaliar os contatos que cada um tinha feito e o resultado disso. Em geral, eram histórias tristes, de mortes por doença ou de perda de identidade cultural.
— O governo brasileiro decidiu então, após esse encontro, mudar a política e não forçar o contato. Tentar identificar as áreas onde estão e garantir que eles vivam sua vida. A intervenção ocorre só quando há risco iminente — diz Leonardo Lenin, coordenador-adjunto de um órgão criado a partir dessa mudança de política: a Coordenadoria Geral de Índios Isolados e de Recente Contato.
Em uma expedição feita em março e em outra em julho, funcionários da Funai confirmaram a presença de Awá isolados na Terra Caru, que fica ao sul da Terra Awá, e outro grupo na Terra Arariboia, mais ao sul ainda. Tudo no Maranhão. Para esse último grupo está sendo preparado um plano de contingência para a eventualidade de se forçar um contato. O risco é grande demais de deixá-los expostos a um encontro hostil com madeireiro, por exemplo.
Na terra indígena Arariboia vivem oito mil índios guajajara. Várias lideranças já foram cooptadas pelo crime de desmatamento. Houve uma queimada que destruiu 40% da reserva. O grupo que foi fazer a expedição passou uma noite inteira ouvindo som de tratores e motosserra na mata. Eles não vão sobreviver numa floresta que fica cada vez menor, cercada de madeireiros e índios em que algumas lideranças já foram corrompidas.
Na série de reportagens que fiz com Sebastião Salgado, ganhei do GLOBO generoso espaço no impresso e no online. Mesmo assim, sobraram fatos para serem apurados e explicados. Um é a questão de “índio isolado”. O que mesmo vem a ser isso? Todo o Brasil viu as fotos dos índios do Rio Envira, no Acre. Quem não acompanha o tema, pode ter concluído que aquela cena exótica dos índios flechando o avião é um caso único. Houve também notícias de outros índios isolados no Vale do Javari, mas existem mais casos do que se imagina.
— O número oficial é de 77 informes de sinais de índios não contatados, mas até agora foram confirmados casos de 27 povos isolados. Nestes, há um conjunto de informações muito fortes. Em muitos casos nós fazemos expedições para confirmar os relatos. Há muitas formas de registrar os sinais e, pela cultura material, identificar a etnia ou o tronco a que pertencem.
Os Awá tiveram mais atenção recente da Funai. Foram seguidas as pistas de grupos no Caru e em Arariboia.
— Normalmente encontramos esses pequenos sinais que eles fazem ao andar na mata. Foram encontrados tapiris (casas) abandonados e fogueiras como eles costumam fazer em seus acampamentos. Pelos sinais deixados, se vê que usam ferramentas muito antigas: machados que já não têm fio, que eles pegaram em algum acampamento e que usam até acabar. Eles, quando deixam um lugar, levam suas redes, arco e flecha e outros pertences, mas deixam sinais característicos, como marcas de coleta de mel ou açaí. O pessoal especializado em leitura desses sinais não tem dúvida de que o que vimos foi de índio isolado Awá, e não dos índios já aldeados — disse Leonardo Lenin, que acompanhou duas expedições. Ele afirma que os 27 povos isolados estão espalhados por Amazonas, Pará, Mato Grosso, Rondônia, Acre, Roraima, Amapá e Maranhão.
É espantoso que, tantos séculos depois da chegada dos portugueses, ainda haja índios isolados em tantas áreas do Brasil, mesmo que o espaço para eles esteja se estreitando. Algumas pistas estão sendo seguidas, de outras etnias, até perto das obras do PAC, como são as hidrelétricas do rio Tapajós ou a de Belo Monte.
O plano de contingência que está sendo feito agora, para os Awá da T.I. Arariboia, também poderá ser usado, se as obras das hidrelétricas acabarem tornando inevitável a iniciativa da Funai de contato com índios isolados na região. O Brasil é assim: complexo, diverso, desafiador.
Awás lutam contra a destruição dos madeireiros no que restou da Floresta Amazônica do Maranhão
- Considerados um dos últimos povos caçadores e coletores, eles tentam sobreviver à ação criminosa dos desmatadores
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A ameaça dos madeireiros
Sebastião Salgado se prepara para fotografar os AwáO discurso Awá
Ouça trecho da fala de uma das lideranças AwáDenúncia
A repórter Míriam Leitão flagra a ação ilegal de madeireiros em uma serrariao jovem guerreiro Jui'i
Ouça trecho de seu discursoOs índios invisíveis
O antropólogo Uirá Garcia fala sobre a cultura AwáO canto da caça
Ouça o canto do jovem guerreiro antes de ir à caça"Nós temos coragem também"
O jovem guerreiro Jui'i fala da ameaça dos madeireirosFonte: http://oglobo.globo.com/infograficos/paraiso-sitiado/
A repórter Míriam Leitão, a convite do renomado fotógrafo Sebastião Salgado, viajou até a Aldeia Juriti e pôde comprovar como os Awá vivem essa dramática expectativa.
http://racismoambiental.net.br/2013/08/paraiso-sitiado-2a-parte-da-reportagem-de-miriam-leitao-e-sebastiao-salgado/
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