domingo, 25 de novembro de 2012

O que fazer com o lixo?

O que fazer com o lixo?
André Antunes - Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)
http://www.epsjv.fiocruz.br/index.php?Area=Noticia&Num=705




No fim da linha do ciclo do consumo e do desperdício, o lixo é fonte de poluição e agravos à saúde mas também de lucros.

O maior navio já construído pelo homem é um superpetroleiro de nome Knock Nevis. O navio - desmontado em 2010 - tinha um comprimento equivalente a quatro campos de futebol e a largura de um prédio de 23 andares. E era capaz de transportar, de uma só vez, uma carga com peso máximo de 564 mil toneladas.
Mas mesmo esse colosso se apequenaria se tivesse que desempenhar a inglória tarefa de transportar o lixo domiciliar gerado anualmente no mundo: uma montanha de 730 milhões de toneladas, que necessitariam de 1,3 mil viagens do Knock Nevis. Isso porque estamos falando só do rejeito gerado nos domicílios. Se tivesse que transportar a somatória do lixo que é gerado anualmente por todas as atividades humanas levadas a cabo no mundo - estimadas em 30 bilhões de toneladas -, o maior navio da história precisaria fazer mais de 53 mil viagens.

Aí você pergunta: transportar para onde? Pois é, como se não bastasse, o transporte é só um dos componentes desta equação. Arranjar um lugar para dispor de todo esse lixo de maneira a provocar o menor impacto possível é um desafio tão grande quanto transportá-lo, se não maior. No lixo podem ser encontrados vários agentes patogênicos e resíduos químicos com potencial para afetar nossa saúde; o lixo é capaz de impactar negativamente o meio ambiente de diversas formas, poluindo o solo, a água e o ar. Para piorar, o descarte do lixo gera um problema na medida em que ninguém quer morar perto de depósitos de rejeitos que, via de regra, acabam sendo instalados próximos a populações pobres em áreas periféricas.

Enfim, o lixo - desde sua geração até sua disposição final - é um tema que extrapola discussões meramente técnicas, trazendo à baila questões políticas, econômicas, sociais e éticas, como você verá ao final desta reportagem, que busca dar um panorama das principais dificuldades para o manejo do lixo hoje no Brasil, as soluções possíveis e as estratégias que vêm sendo apresentadas como soluções, mas que trazem em si mesmas outros problemas.



Política Nacional de Resíduos Sólidos



Mas por que falar de lixo agora? A explicação está na lei 12.305, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), estabelecendo diretrizes e metas para a área de gerenciamento do lixo no país, além de criar instrumentos para que os três entes federados, o setor produtivo e a sociedade civil se articulassem no sentido de garantir o descarte ambientalmente adequado dos chamados resíduos sólidos comumente chamados de lixo. Essa denominação engloba desde o que é gerado nos domicílios até o que é produzido pela atividade mineradora, passando por resíduos de serviços de saúde, industriais, entre outros. A lei estipulou um prazo de dois anos para que todos os municípios e estados que desejassem receber recursos federais destinados a essa área elaborassem planos de gestão de resíduos, que deveriam apresentar um diagnóstico de todo o lixo gerado em seus territórios, especificando volume, caracterização e as formas de destinação e disposição final adotadas, além de uma série de outros itens, como: a identificação de áreas favoráveis para a disposição ambientalmente adequada dos resíduos; regras para seu transporte; planilhas de custo e metas para redução, reutilização, coleta seletiva e reciclagem, no sentido de reduzir a quantidade de resíduos que efetivamente precisaria ser descartada.

O prazo terminou em agosto deste ano, e o balanço não é dos mais animadores. Segundo Silvano Silvério, diretor de ambiente urbano do Ministério do Meio Ambiente (MMA), a estimativa do governo é de que cerca de 550 municípios elaboraram ou estão elaborando seus planos de gestão, e deverão receber recursos do MMA. Isso representa em torno de 10% dos 5.565 municípios brasileiros. No mais, diz Silvério, 17 estados e o Distrito Federal estão elaborando seus planos com recursos do MMA. "Ressaltando que 2012 não é o prazo para terem seus planos elaborados, e sim para acessar recursos da União. O que não impede e nem desobriga os municípios e estados de elaborarem seus planos, que são instrumento da PNRS e são, portanto, obrigatórios", afirma. Com o fim do prazo, ele diz que o governo avalia a possibilidade de continuar apoiando a elaboração dos planos.

Maurício Waldman, pós-doutor em resíduos sólidos pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), acredita que muitos dos municípios que concluíram seus planos de gestão de resíduos no prazo o fizeram de maneira incompleta. O pesquisador cita o caso de São Paulo, onde, segundo ele, "a prefeitura, para atender a exigência de fazer um plano até esse ano, fez um que não especifica metas, custos de implantação, só faz promessas. Ninguém quis se comprometer". Para Waldman, estabelecer o prazo para elaboração até 2012, as vésperas de uma eleição municipal, foi equivocado. "Eu não consigo imaginar nenhum prefeito deixando um plano destes de graça para o seu sucessor. Tem uma questão aí que é política", aponta. Segundo ele, uma das dificuldades é inerente à forma como os cargos são preenchidos na maioria das prefeituras. "Não necessariamente quem está à frente de uma secretaria de obras ou de uma secretaria de meio ambiente é da área. Em geral é uma pessoa que está na composição política do partido que entrou e é contemplada com esse cargo", situa. Além disso, diz, em geral o aparato administrativo das prefeituras não tem uma concepção muito clara de tudo o que envolve o gerenciamento do lixo. "Na cabeça de muitos administradores, qual é o grande problema do lixo? É não deixá-lo acumulado na calçada porque é esteticamente ruim, a população reclama. Então a ideia é tirar o lixo da calçada. Mas para onde ele vai? Aí é outra historia", afirma.



Quantidade e destinação do lixo domiciliar



Maurício levanta uma questão fundamental: quanto lixo é gerado nos municípios brasileiros todos os dias e o que é feito com ele? Os dados consolidados mais recentes são de 2008, e estão na Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo ela, a coleta regular de resíduos sólidos é feita em quase 90% dos domicílios do país, sendo que na área urbana esse percentual passa de 98%; na área rural, contudo, a coleta só chega a 33% dos domicílios. Em 2008, foram coletadas 183,5 mil toneladas por dia de resíduos sólidos urbanos (provenientes das residências e estabelecimentos comerciais e de serviços) no país.

Segundo a Política Nacional de Resíduos Sólidos, atualmente o local mais adequado para receber esse lixo são os aterros sanitários, empreendimentos que devem receber licença ambiental dos órgãos ambientais estaduais para funcionar e obedecer a uma série de critérios técnicos: o local tem de ser cercado para barrar a entrada de estranhos; o lixo deve ser coberto por terra e, por baixo, receber uma manta de polietileno para evitar que o chorume - resíduo altamente tóxico proveniente da decomposição do lixo - contamine corpos d'água; o terreno deve possuir uma unidade de tratamento de chorume e uma usina de captação do metano, gás também produzido na decomposição da matéria orgânica e que é um dos causadores do efeito estufa; entre outros critérios. Em 2008, existiam 1.723 empreendimentos desse tipo no Brasil, que receberam 110 mil toneladas diárias de lixo, ou seja, 58,3% do total produzido. Este número vem crescendo: dez anos antes, de acordo com o IBGE, esse percentual era de 35,4%.

Sobram então aproximadamente 73 mil toneladas diárias de lixo (41,7% do total) que não foram dispostos em aterros sanitários e, portanto, segundo a lei, foram despejados de forma inadequada do ponto de vista ambiental. E é justamente esse um dos principais desafios para os municípios brasileiros na área de gerenciamento dos resíduos hoje. Segundo a PNSB 2008, dessas 73 mil toneladas/dia, 37,3 mil (19,8% do total) foram dispostas nos chamados vazadouros a céu aberto, ou simplesmente, lixões. Outras 36,6 mil toneladas/dia (19,4%) de resíduos foram para os aterros controlados, que oficialmente são uma mistura entre lixão e aterro sanitário, mas que não atendem a todos os critérios para serem classificados como aterros sanitários e, por isso, não são considerados adequados para disposição final do lixo.

A erradicação dos lixões e dos aterros controlados é um dos pontos focais da Política, tanto que a lei estipulou um prazo de quatro anos após sua aprovação para que os 5.565 municípios brasileiros passassem a descartar todo o seu lixo em aterros sanitários. O prazo termina em 2014, e a tarefa, pelos dados do IBGE, não será das mais fáceis: em 2008, existiam 2.906 lixões e 1.310 aterros controlados no país. Esse quadro, no entanto, já foi muito pior: em 1998, eram 4.642 lixões e 1.231 aterros controlados, que, juntos, recebiam 56,7% do lixo gerado no país na época. Este percentual caiu para 39,2% em 2008, segundo o IBGE. Para Silvano Silvério, o histórico dá motivos para otimismo. "Ele mostra que mesmo antes da política, sem apoio financeiro do governo federal, houve um bom aumento na destinação dos resíduos em aterros sanitários", aponta. Segundo o diretor de Ambiente Urbano do MMA, o governo federal ainda estuda a possibilidade de apoiar os municípios nessa empreitada. "Essa é uma agenda tipicamente municipal, e, portanto, ainda não temos nenhuma definição se vamos apoiar ou não, mas o que eu posso dizer é que isso está em discussão".

Os 2.906 lixões do país estão distribuídos por 2.810 municípios, de acordo com a pesquisa do IBGE. Trocando em miúdos, 50,5% das cidades brasileiras têm como principal forma de destinação de seus resíduos os lixões. Erradicá-los, diz Silvério, "é um desafio grande para os municípios, e a destinação adequada até 2014 vai depender de como os prefeitos vão se colocar frente a essa meta que a lei impõe". Um instrumento previsto na lei e que poderia contribuir nessa tarefa, diz, são as ações consorciadas entre vários municípios para a implantação e operação de aterros sanitários, principalmente para os municípios de pequeno porte, que sozinhos não produzem a quantidade de lixo suficiente para que seja viável economicamente a instalação de um aterro sanitário. Segundo o IBGE, 98,5% dos lixões e 93,5% dos aterros controlados localizam-se em cidades pequenas, com até 100 mil habitantes. De acordo com Silvério, o custo total para adequar a destinação final do lixo ao disposto na lei no Brasil inteiro é da ordem de R$ 10 bilhões.

Os dados do IBGE mostram que a incidência de lixões não é uniforme no país (veja mapa ao lado), e tende a ser maior nas cidades pequenas. Além disso, o uso dos lixões como forma de descarte dos resíduos é mais comum nas regiões mais pobres: dos 2.906 lixões citados na PNSB, 1.655 estavam na região Nordeste, 388 no Norte e 349 no Centro-Oeste. Enquanto no Brasil como um todo metade dos municípios tem lixões, nessas regiões a situação é bem mais preo-cupante: no Nordeste, esse índice chega a 89%; no Norte, a 84%; e no Centro-Oeste, a quase 73%. Já no Sul, que concentra 805 dos 1.723 aterros sanitários do país, apenas 15,3% dos municípios têm lixões; e no Sudeste, que tem 605 aterros sanitários, 18,4% dos municípios.

Para João Alberto Ferreira, professor do departamento de Engenharia Sanitária da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), parte da explicação está nos altos custos de implantação de um aterro sanitário. "Do ponto de vista de um administrador público acostumado com um lixão, o aterro sanitário é muito caro. Se hoje uma prefeitura gasta R$ 3 por tonelada depositada em lixão, ela vai passar a gastar até R$ 50 com o aterro", revela. Supondo que esta barreira seja transposta, diz Ferreira, é provável que o prefeito tenha dificuldade de encontrar empresas interessadas. "Se fizer uma licitação para contratar uma empresa grande que hoje opere no Brasil, muitas não se interessam por um município de pequeno porte porque não tem viabilidade econômica".

Maurício Waldman aponta que mesmo que o histórico nacional mostre uma evolução na disposição adequada de rejeitos, é preciso ir um pouco mais a fundo para ter a dimensão real do tamanho do problema. "Se você pegar o mapa dos municípios do Brasil onde tem lixão, embora a maior parte do lixo vá para os aterros, vê-se que eles estão nas cidades mais populosas e ricas. A maior parte das cidades tem lixões, e estão onde? Na Amazônia, no pantanal, em áreas de mangue, ou seja, em áreas de interesse ambiental", destaca, completando: "É complicado, não só pelos lixões em atividade, mas também pelos que estão sendo desativados sem nenhum laudo". Waldman estima em mais de 15 mil o número de lixões no país, contando os que foram desativados mas ainda oferecem riscos à saúde.



Lixo e saúde



Antes de ler esta parte da reportagem, cabe uma advertência: evite continuar se tiver acabado de comer. O conselho não é gratuito: falar de todos os agravos para a saúde e para o meio ambiente que o lixo pode causar é meio tenebroso, e pode provocar náusea e indigestão em pessoas suscetíveis. Por isso mesmo, é importante para quem estuda, trabalha ou simplesmente tem interesse na área da saúde.

Doutor em saúde pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz), João Alberto Ferreira lista, no artigo ‘Aspectos de saúde coletiva e ocupacional associados à gestão dos resíduos sólidos municipais', algumas das formas pelas quais o lixo pode afetar a saúde e o meio ambiente. "Microorganismos patogênicos ocorrem nos resíduos sólidos municipais mediante a presença de lenços de papel, curativos, fraldas descartáveis, papel higiênico, absorventes, agulhas e seringas descartáveis e camisinhas", diz o pesquisador. Ele cita como exemplos os microorganismos responsáveis por doenças do trato intestinal e dermatites e o vírus causador da hepatite B.

A transmissão indireta de doenças pode se dar pelos vetores que encontram abrigo e alimento no lixo. No artigo ‘Resíduos sólidos e saúde pública', Cristina Lucia
Sisinno, também doutora pela Ensp, afirma que no caso do lixo esses vetores são principalmente roedores e insetos. Os primeiros, diz ela, "podem estar implicados na transmissão de um grande número de doenças", para em seguida listar as principais: peste bubônica, tifo, leptospirose e salmonelose, entre outras. Já entre os insetos que proliferam no lixo, destacam-se as moscas, mosquitos pulgas e baratas, que podem atuar na transmissão de doenças que vão desde diarreias infecciosas até peste bubônica, passando por malária, dengue e febre amarela.

Como se não bastasse, Ferreira lembra ainda uma situação que segundo ele é recorrente nos lixões do país: a utilização do lixo como fonte de alimento de animais criados em sítios nas proximidades. "É muito comum ter porcos e vacas nos lixões, e a pergunta é: quem consome essa carne? Ela pode estar sendo consumida sem que se tenha ideia de onde veio. Em todas as cidades temos controle muito eficiente da vigilância sanitária sobre o consumo da carne de porco e de vaca nas feiras livres? Duvido", opina.



Impactos ambientais



A decomposição do lixo gera dois resíduos com potencial enorme de impactar o meio ambiente: o chorume e o gás metano. O chorume, como aponta Cristina Lucia Sisinno no artigo ‘Impacto ambiental dos grandes depósitos de resíduos urbanos e industriais', é formado quando a água da chuva e a umidade presente no próprio lixo passam através dos resíduos dissolvendo componentes orgânicos e inorgânicos e produtos em decomposição, "formando um líquido altamente poluente e de complexa composição". Estudos da United States Environmental Protection Agency [em português, Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos], citados por Cristina, relacionaram mais de 100 substâncias consideradas perigosas para a saúde humana em amostras de lixo urbano, como arsênio, antimônio, chumbo e mercúrio. "Atingindo os lençóis d'água subterrâneos - fonte de abastecimento de água para a população em muitos locais -, o chorume poluirá poços, podendo provocar endemias, desencadear surtos epidêmicos ou provocar intoxicações. Por ser comum na carga de chorume a presença de microorganismos indicadores de poluição fecal, as águas superficiais receptoras de chorume também terão uso limitado", escreve Cristina.

Já o metano, escreve a autora, é o componente predominante do biogás. Este, por sua vez, é gerado quando a matéria orgânica presente no lixo é fermentada por microorganismos em um ambiente impermeável ao ar. Além de ser inflamável, o que torna comum a ocorrência de combustão espontânea do lixo nas áreas de descarte, o metano, segundo João Alberto Ferreira, é um dos gases causadores do efeito estufa, sendo 21 vezes mais impactante nesse sentido que o dióxido de carbono. Uma das maneiras de se lidar com o biogás, nos aterros sanitários, é queimando-o, o que de acordo com Cristina constitui uma fonte de poluição do ar. Ferreira complementa: "Num aterro de grande porte, são 200 viagens por dia de caminhões de lixo, e com isso há a emissão local de barulho, dióxido e monóxido de carbono. Além disso um aterro grande movimenta 10 mil toneladas de lixo por dia. Uma vizinhança relativamente próxima vai sentir o cheiro e vai sofrer os impactos do material particulado, que causa problemas para a atmosfera local".



Reciclagem

Por tudo isso é que a PNRS colocou como prioridade a erradicação dos lixões e a instalação de aterros sanitários para dar conta de receber todo o lixo produzido no país, mas a disposição "ambientalmente adequada" é apenas a última etapa de um processo que deve também integrar a reutilização e a reciclagem de materiais com vistas a reduzir a quantidade que precisa efetivamente ser descartada. E de acordo com os números do IBGE, essa é uma parcela pequena do total de resíduos sólidos produzidos diariamente nos domicílios brasileiros, em torno de 16% do total. Das 183 mil toneladas diárias de resíduos produzidos em 2008, 58,6 mil toneladas foram de materiais recicláveis, como o vidro, o papel, papelão, plásticos e metais, o que representa 31,9% do total. Nesse aspecto, pelo menos segundo as estatísticas, a situação não é das piores: em 2008, o percentual de reciclagem do alumínio, aço, papel e papelão ultrapassou os 35% do total. Por outro lado, essa taxa ficou em torno dos 20% para vidros e plásticos.

O problema aparece quando analisamos mais pormenorizadamente esses números: segundo comunicado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre resíduos sólidos, de 2012, a participação da coleta seletiva formal - presente em apenas 18% dos municípios, sendo que na maioria deles ela só cobre alguns bairros - no montante reciclado foi de 0,7% para os metais, 7,5% para papel e papelão, 10,4% para o vidro e 17,7% para os plásticos. "Produtos como latas de alumínio e PET têm um nível alto de reciclagem por conta de um trabalho semiescravo, dependente de gente que está catando lixo na rua em condições degradantes", conclui João Alberto Ferreira. Segundo o Ipea, os catadores hoje somam entre 400 mil e 600 mil pessoas, das quais apenas 10% estão organizados em cooperativas. Sua renda mensal média varia entre R$ 420 e R$ 520.

Segundo Severino Lima Júnior, da articulação nacional do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), um aspecto positivo da Política Nacional de Resíduos Sólidos foi a inclusão dos catadores no texto da lei, de modo a evitar que esses trabalhadores, que já vivem sob condições precárias, percam totalmente suas fontes de renda com o encerramento dos lixões. "A PNRS que diz que agora as prefeituras têm obrigatoriedade de contratar cooperativas, a não ser nas cidades onde não haja catadores. E vai além: as prefeituras e os estados, na elaboração de seus planos, têm a obrigação de prever a participação dos catadores se quiserem recursos federais", afirma Severino. Segundo ele, a ideia é que os catadores recebam apoio para formação de cooperativas - fortalecendo sua organização e seu poder de barganha frente à indústria da reciclagem - e com a inclusão destas nos programas de coleta seletiva formais. "Muitas prefeituras não querem reconhecer o papel e a importância do catador no ciclo de destinação adequada dos resíduos, pelas dificuldades que têm algumas cooperativas em termos de organização e também pela dificuldade de algumas prefeituras perderem o vício de contratação de empresas terceirizadas", avalia Severino. Segundo ele, mais de 90% do material que é reciclado no país passa pela mão de um catador, seja em lixões, na rua, em cooperativas ou por programas oficiais de coleta seletiva.

Vidro, plástico, metais, papel e papelão não são os únicos materiais que podem ser reaproveitados. Segundo o IBGE, 51,4% do lixo produzido no Brasil em 2008 foi de matéria orgânica. Entretanto, das 94 mil toneladas diárias, apenas 1,5 mil, ou 1,6% do total, foram encaminhados para tratamento via compostagem, para ser usado como adubo. E isso é um problema, porque é justamente o lixo orgânico que, ao se decompor nos aterros e lixões, causa os maiores problemas para o meio ambiente e para a saúde pública. "As cidades fariam mais se debitassem do IPTU o dinheiro para todo mundo ter uma composteira do que fazer essas grandes operações de coleta de resíduos com caminhões compactadores, estações de transbordo. Só que se você fizer composteira doméstica quem vai reclamar são as empresas coletoras de lixo", diz Maurício Waldman, lembrando que as empresas ganham por tonelada de material coletado e, portanto, não interessa sua composição. E como você verá adiante, atualmente essa não é a única forma que o setor privado dispõe para gerar dinheiro a partir do lixo, principalmente da fração orgânica.

"A reciclagem", escreve Waldman no livro ‘Lixo: cenários e desafio e desafios', "além de não se contrapor à dinâmica geral do processo de acumulação de capital, contribui, pelo contrário, para sua reprodução em outro patamar, agora reclamando uma lógica ‘sustentável'". Ele lembra que a reciclagem está atualmente monopolizada por cinco itens - vidro, papel, plástico, aço e alumínio -, que são os mais valorizados do ponto de vista econômico. "Deste modo, mesmo que a performance da atividade recicladora detenha sinonímia com a ‘defesa da natureza', trata-se de iniciativa fortemente pautada pela viabilidade econômica, que determina seus fluxos e progressos", aponta no texto. A baixa inserção dos resíduos orgânicos nos ciclos de reciclagem, para Waldman, demonstra essa íntima relação da indústria recicladora com as dinâmicas de mercado.



O lucro do lixo

Você deve se lembrar que o Rio de Janeiro sediou, em junho deste ano, a Rio+20, evento da Organização das Nações Unidas (ONU) que reuniu governantes de centenas de países para discutir soluções para a crise ambiental. Talvez você se lembre também que a conferência deixou como legado oficial a proposta de economia verde, que basicamente propõe que a financeirização da natureza - por meio de mecanismos de mercado - é a melhor solução para os problemas ambientais. Mas o que o lixo tem a ver com isso? Muito, e uma das chaves para entender essa relação está numa pequena sigla: MDL, ou Mecanismo de Desenvolvimento Limpo. Fabrina Furtado, doutoranda do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ippur/UFRJ), explica que o MDL foi criado com o Protocolo de Kyoto, compromisso internacional assinado em 1997 no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, que estabeleceu que os países ditos desenvolvidos deveriam reduzir suas emissões de gases de efeito estufa em 5,2% (com base nos índices do ano 1990) até 2009. "Esse protocolo também estabeleceu o que eles chamam de mecanismos de flexibilização, que permitem que os países ricos possam atingir suas metas de forma mais flexível", afirma Fabrina, completando que, entre estes mecanismos, estão a comercialização de carbono e o MDL, que devem ser analisados conjuntamente. "A comercialização do carbono permite que as empresas comprem e vendam sua poluição. Exemplo: há duas empresas, uma na Alemanha e outra na Inglaterra, as duas têm metas de redução, só que uma consegue reduzir muito mais do que é obrigada e a outra não consegue atingir sua meta. Em vez de ela mudar sua forma de produzir e diminuir suas emissões, ela compra o excesso da outra empresa", explica. O MDL, por sua vez, foi a forma encontrada para integrar os países ‘em desenvolvimento' nesse comércio. "Os países ricos, com compromisso de redução das emissões de CO2, em vez de reduzirem as emissões, podem investir em projetos que teoricamente devem reduzir ou remover CO2 da atmosfera elaborados por empresas nos países em desenvolvimento. Esses projetos geram um ativo financeiro que pode ser comercializado depois de passar pelo que se chama de ciclo de projeto do conselho executivo do MDL na ONU", diz. A última etapa deste processo é o registro do projeto nesse conselho e, a partir daí, ele pode gerar créditos que são vendidos e comprados através da própria ONU.

E adivinhe qual foi o primeiro país do mundo a registrar um projeto de MDL na ONU? Acertou quem falou o Brasil. E o projeto pioneiro foi justamente o do aterro sanitário Novagerar, em Nova Iguaçu, estado do Rio, em 2004. Entre os projetos passíveis de serem registrados como MDL pela ONU - e portanto de receberem créditos para serem comercializados - estão vários que dizem respeito aos aterros sanitários, e uma das possibilidades é a captação do biogás para geração de energia elétrica, que também foi implementada no aterro controlado de Gramacho, em Duque de Caxias (RJ), que antes de ser fechado, no inicio de 2012, era o maior da América Latina. A energia gerada ali, afirma Fabrina, será vendida para a Reduc, refinaria da Petrobras localizada na mesma cidade. Segundo ela, o país hoje é o 3° do mundo em número de projetos de MDL registrados na ONU, com 213, sendo 33 na área de gestão de aterros sanitários.



Soluções paliativas para um problema estrutural



Para Fabrina, o principal problema deste tipo de iniciativa está na sua lógica, "que diz que os problemas ambientais ocorrem porque não tem produto nem propriedade de direito sobre a natureza". "Isso despolitiza o debate sobre mudanças climáticas, reduzindo-o a uma questão de emissão de carbono, que por sua vez é reduzido a um cálculo matemático de emissões que podem ser trocadas. E exclui de todo esse processo a discussão sobre o modelo de desenvolvimento e justiça ambiental. São feitas mudanças aqui e ali mas no longo prazo não se têm grandes melhorias, porque o problema na verdade é estrutural. As questões deveriam ser: por que se gera tanto lixo, de onde ele vem, quais as populações que são mais diretamente afetadas pela degradação ambiental que ele provoca" protesta.

Além disso, ela afirma que o MDL acaba legitimando o direito de poluir. "A causa real da geração da poluição e os impactos socioambientais são ignorados. Tanto é que são as empresas que mais precisam mudar suas formas de atuar que compram créditos, porque é mais barato", afirma. A maioria dos projetos de MDL, diz Fabrina, são problemáticos. "Hoje há projetos que recebem créditos e têm diversos impactos sociais e ambientais, como por exemplo a Thyssen Krupp, que recebe crédito de carbono mesmo sendo uma empresa denunciada por crimes ambientais, violação de direitos, relação com milícia", critica. No caso de Gramacho, aponta, o Ministério Público Federal entrou com ação contra a concessionária do aterro hoje desativado, denunciando o vazamento de chorume nas águas da Baía da Guanabara e a falta de monitoramento ambiental do projeto que, na análise de Fabrina, ganha para continuar poluindo.



Incineração



A captação de biogás é só uma das possibilidades de se lucrar com o lixo que o mercado de carbono abre para as empresas do setor. Outra delas é a incineração do lixo, também com o intuito de gerar energia ‘limpa' e reduzir a emissão de gases de efeito estufa. Não por acaso, a PNRS não proibiu a incineração do lixo, o que para especialistas da área deixou a porta aberta para que ela fosse considerada uma forma ambientalmente adequada de destinação dos resíduos sólidos. Segundo Elisabeth Grimberg, coordenadora de resíduos sólidos do Instituto Pólis, essa é uma das principais falhas da lei. "Vai se queimar materiais com alto teor de combustão que ainda tem um ciclo de vida a cumprir como os plásticos, papéis e papelão, que são materiais que, se você recicla, trazem economia de energia, de água e de matéria prima", aponta.

O Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis também se posicionou contra a incineração. "Conhecemos vários modelos de reaproveitamento energético através da incineração na Europa, e reconhecemos que em alguns essa tecnologia serve, mas porque não há catadores na matriz da cadeia de reciclagem deles. No Brasil temos 600 mil catadores e se você implantar a incineração vai matar essas famílias de fome", critica Severino, concluindo: "A Europa em si já está discutindo a questão energética e está querendo ampliar o papel da energia eólica e solar. Por isso muitos países estão com equipamentos parados querendo vender para a América Latina. É uma forma de eles darem destinação a equipamentos que vão ficar em desuso". Por fim, a energia produzida a partir da queima do lixo, propagandeada como 'limpa', tem impactos ambientais relevantes. Segundo documento produzido pela organização não-governamental Gaia (Grupo de Ação e Intervenção Ambiental), por mais que mecanismos de controle da poluição do ar presentes em modelos novos de incineradores retenham alguns dos elementos poluentes, eles são "transferidos para outros subprodutos, tais como os diferentes tipos de cinza e na fumaça, que resultam da queima, e para a lama que se vai concentrando nos filtros d'água, todos eles inevitavelmente despejados no meio ambiente". Além disso, afirma a entidade, os incineradores emitem mais dióxido de carbono por unidade de geração de eletricidade do que usinas movidas a carvão, por exemplo.



Seropédica: lixo e injustiça ambiental



Ninguém quer morar perto de um depósito de lixo, certo? Essa constatação, embora óbvia, traz à tona um problema frequente na área de gerenciamento do lixo, mas que é pouco abordado: a falta de transparência no processo de escolha dos locais destinados a receberem os rejeitos, que em geral, acabam próximos a populações com menores possibilidades de fazerem valer seus direitos. A questão da disposição do lixo tem papel central na discussão sobre essas situações que, segundo uma certa corrente de ambientalistas, configuram injustiças ambientais.

Talvez um exemplo recente facilite o entendimento. Em junho deste ano, o maior lixão da América Latina, no Jardim Gramacho em Duque de Caxias, região metropolitana do Rio de Janeiro, encerrou suas atividades depois de 34 anos recebendo o lixo gerado no Rio e em outras cidades da região. Com o fechamento, as 7 mil toneladas de rejeitos que o local recebia diariamente passaram a ser levadas para um aterro construído com essa finalidade na cidade de Seropédica, a cerca de 70 quilômetros do centro do Rio, que mal nasceu e já é o maior aterro sanitário do país em volume de lixo recebido: segundo o Ministério das Cidades, são 3 milhões de toneladas por ano.

Contudo, José Cláudio Alves, decano de extensão da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) - instituição localizada em Seropédica e que vinha acompanhando esse processo -, afirma que a implantação do novo aterro foi marcado por diversas irregularidades. Para começar, diz ele, leis do município tiveram que ser alteradas para permitir a instalação do aterro. Primeiro, era preciso permitir que lixo de outra cidade, no caso o Rio, fosse depositado ali; a segunda alteração pressupunha diminuir o tamanho de uma Área de Preservação Ambiental (APA) exatamente sobre o local destinado a receber o aterro. "O local é parte da Serra dos Órgãos, que é onde você tem a captação das águas para alimentação do aquífero Piranema", diz José Cláudio. A terceira alteração na lei era a permissão de que uma empresa privada gerenciasse isso, e a quarta, a criação de uma área de saneamento ambiental, destinada à instalação do aterro e que, segundo ele, é do tamanho do campus da UFRRJ, em torno de 3,6 mil hectares. "Essas alterações foram propostas na Câmara dos Vereadores numa sexta-feira e aprovadas na segunda. Foram feitas e aceitas a toque de caixa. Isso garantiu que o empreendimento viesse a existir", revela.

Segundo o decano de extensão da UFRRJ, a universidade procurou o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), órgão ambiental responsável por conceder a licença ambiental do aterro sanitário, para denunciar os possíveis impactos da sua instalação sobre um aquífero. "Nós levamos laudos sobre a situação do aquífero, que é de solo sedimentar, arenoso -, escavando meio metro já se encontra água. É um aquífero frágil, que pelos estudos da Rural, daria para abastecer 140 mil pessoas. Mas o Inea acatou o estudo de impacto ambiental da própria empresa que instalaria o aterro, que dizia que não havia corpos hídricos nesse local, o que não é verdade: eles inclusive aterraram pequenas nascentes e córregos que corriam nesse espaço do empreendimento", argumenta.

Como se não bastasse, José Cláudio ainda aponta várias falhas de engenharia no empreendimento, que colocam em risco o equilíbrio do ecossistema da região. "Até hoje eles não têm o centro de tratamento de chorume. Transportam o chorume em tanques de Seropédica até Águas de Niterói. Eu e algumas pessoas fizemos um documentário: fomos até o aterro de Nova Iguaçu, que é da mesma empresa, coletamos água a 50 metros de distância do empreendimento e fizemos análise. A água já estava toda contaminada pelo lixo, com fósforo e amônia. A meu ver, o mesmo está acontecendo em Seropédica: não há nenhum controle sobre esse chorume, e o aquífero, a essa altura do campeonato, já deve estar bastante contaminado", diz.

Para ele, o aterro de Seropédica é um caso emblemático de injustiça ambiental. "Eles tentaram fazer esse empreendimento em Paciência, na Zona Oeste do Rio, só que lá tem uma população eleitoral muito grande e houve um movimento bem forte com parlamentares. Quando eles viram que lá não iriam conseguir, escolheram Seropédica, onde a população eleitoral é muito pequena, muito mais pobre, com capacidade de mobilização inferior", aponta. E conclui: "O Inea deveria cumprir o seu papel e não cumpre. Ele é um órgão absolutamente refém de interesses políticos".



Dilemas

Como você pôde ver, os desafios que o lixo coloca são imensos, a começar porque sua geração não para de crescer no Brasil, tanto em termos absolutos quanto per capita, com a inserção econômica, via consumo, de grandes parcelas da população. Para ilustrar, bastam alguns dados presentes no livro 'Lixo: cenários e desafio e desafios', de Maurício Waldman: enquanto a população brasileira aumentou 15,6% entre 1991 e 2000, a produção de lixo domiciliar expandiu-se 49%. Isso porque estamos falando apenas do lixo domiciliar, que embora cause maior comoção do ponto de vista da opinião pública, representa apenas 2,43% do total do lixo mundial. Tanto que, de acordo com o autor, "prevê-se que a logística de descarte dos rejeitos entrará em colapso em muitas nações, inclusive pela falta de espaço". Mesmo em países como o Brasil, que possui áreas disponíveis, elas situam-se muito longe da fonte geradora, "pressupondo para alcançá-las uma remuneração proibitiva pelo frete dos resíduos", diz ele.

Como aponta Waldman, tratar da questão do lixo sem questionar o consumo (e a consequente geração de lixo) como indicativo de desenvolvimento, é impossível. Você já reparou que produtos como eletrodomésticos, celulares, computadores e até veículos têm vida útil cada vez mais curta? Pois isso não é por acaso, e a razão tem um nome pomposo: a obsolescência, que se dá quando um produto já é fabricado de modo a se deteriorar rapidamente ou quando ganha uma repaginação, que pode ser, por exemplo, um novo layout ou novas funções. Waldman escreve que a obsolescência tem como função impulsionar os ciclos de reprodução do capital. "Quanto mais rápida for a substituição das mercadorias, tanto mais encorpado será o giro do dinheiro", aponta. Em termos econômicos, continua, a obsolescência "promove a ampliação dos ganhos financeiros, visto que, precarizando a durabilidade das mercadorias, permite o rebaixamento do seu custo. Quanto antes e quanto mais os produtos se tornarem inúteis, tanto maiores serão os lucros, ainda que a contrapartida seja sobre-explorar os recursos naturais e, é claro, maximizar a geração de lixo".

Como indaga outro trecho de seu livro: "O mundo tem assistido a uma sobre-exploração de recursos sem que nem mesmo as necessidades mínimas de parte significativa da humanidade estejam sendo atendidas. Ora, como então imaginar a ampliação deste modelo? Com certeza não existem recursos suficientes. Caso o padrão das sociedades afluentes fosse estendido para toda a população mundial, seriam necessários três planetas Terra para sustentar os humanos".

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Annie Leonard me conta “A História das Coisas”


Annie Leonard me conta “A História das Coisas”




(Efraim Neto/ Mercado Ético)


Consumo excessivo. Esse é um dos principais dilemas da atualidade. Com A História das Coisas, vídeo caseiro baseado em desenhos, Annie Leornad conquistou o mundo ao mostrar os efeitos de uma economia que valoriza o acúmulo de riquezas e de “coisas”. No vídeo de 20 minutos, Annie apresenta os resultados de mais de dez anos de pesquisas sobre o sistema de produção, distribuição, consumo e descarte de produtos no mundo.
Nesta entrevista, a ativista fala sobre suas experiências, aventuras e como devemos focar na qualidade de vida ao invés do consumo exacerbado. Ela conta sobre suas inspirações para o vídeo e o que a levou a escrever um livro contendo detalhes dessas experiências, sobre educação ambiental, sustentabilidade e sobre o papel da sociedade na instituição de uma nova cultura econômica e de consumo.
O filme, que deu origem ao livro, foi visto por mais de 15 milhões de pessoas, sendo o Brasil um dos países com maior número de telespectadores. Annie, que vive com a filha em uma comunidade em Berkley, na Califórnia, ainda destaca a importância de temos um superávit de coisas que realmente importam: o tempo para o lazer, qualidade de vida e a necessidade da sociedade reconsiderar suas prioridades, aprendendo a viver melhor e com menos.
Efraim Neto - Como surgiu a ideia de escrever o livro A História das Coisas?
Annie Leonard – Em uma inversão da ordem habitual. Primeiramente eu fiz o filme e, em seguida, escrevi o livro. O filme resumiu o que aprendi em 20 anos de viagens e estudos. Visitei fábricas e depósitos em todo o mundo e pude mostrar, em primeira mão, tudo sobre os impactos que a nossa forma de produzir e descartar “coisas” provocam em nossa saúde, no meio ambiente e na sociedade. A História das Coisas conta essas experiências de forma engraçada.
Depois que o filme saiu, recebi dezenas de milhares de emails pedindo mais informações sobre as histórias que ali contei. Fiquei tão feliz que as pessoas queriam falar sobre essas questões – geralmente mantidas fora da discussão pública -, que tentei responder a cada email. Mas isso não funcionou. Em vez disso, decidi escrever um livro que incluísse mais detalhes sobre as histórias apresentadas no filme, algo que pudesse também falar das minhas viagens.
EN – Em seu livro, você traz diversos questionamentos a respeito do estilo de vida humano. Qual a principal mensagem que você pretende transmitir com a História das Coisas?
AL – Minha mensagem principal é que podemos produzir coisas melhores e com menos. A mudança é possível. O nosso meio ambiente e corpos estão repletos de produtos químicos tóxicos. A nossa economia, por meio do consumo excessivo, gera quantidades enormes de resíduos e trata as pessoas pobres como descartáveis. Não precisa ser dessa maneira. Pode ser diferente. Com melhores tecnologias, políticas e mudanças na cultura, podemos ter uma sociedade que seja saudável, sustentável e justa.
EN – Relatórios recentes do UNEP têm apontando que necessitamos modificar os nossos meios de produção e consumo. O que você pensa a respeito disso?
AL – Isso está correto. Muitos acadêmicos e cientistas estão dizendo a mesma coisa. A humanidade está usando, a cada ano, mais recursos e gerando mais lixo do que o planeta pode suportar. A Global Footprint Network calcula que globalmente estamos usando 1,5 planetas. Os limites da Terra nos obrigam a aprender a usar os recursos de forma mais sensata, desperdiçar menos e compartilhar mais.
Isto significa que para melhorar nossas práticas precisamos tornar a produção industrial mais eficiente, mais saudável e sustentável. Há muito espaço para melhorar. Muitas empresas – grandes, médias e pequenas -, em todo mundo, estão demonstrando, através da redução do uso de água, energia e resíduos, compromisso com a sustentabilidade. A mudança é possível, mas requer redesenhar tudo: os produtos, as fábricas e o sistema energético, em especial. Precisamos cultivar os valores culturais em torno da qualidade de vida, da saúde, da felicidade e da comunidade.
EN – Em sua opinião, quais são os maiores gargalos do nosso modelo econômico?
AL – Há uma série de problemas fundamentais com o nosso atual modelo econômico. Um dos principais problemas é o foco no crescimento econômico e o PIB como o único instrumento para mensurar como a nossa sociedade faz isso. O crescimento econômico deveria ser um instrumento para avançarmos em direção aos objetivos sociais: comunidades mais saudáveis, pessoas mais felizes, ambientes mais limpos e boas escolas. Enquanto isso não mudar, viveremos uma situação ambígua, onde acidentes automobilísticos, derramamento de resíduos perigosos, construção de prisões e problemas de saúde parecem ser considerados positivos, uma vez que auxiliam o crescimento econômico.
Se eu pudesse mudar alguma coisa, criaria uma ferramenta pela qual pudéssemos avaliar o que estamos fazendo como sociedade. Não contaríamos apenas quanto dinheiro temos, mas sim se os nossos filhos estão saudáveis, se temos oportunidades de trabalho decente e educação de qualidade, se os membros da comunidade sentem-se seguros e felizes, se nosso ar está limpo.
EN – Será que estamos diante de uma mudança de paradigma na nossa realidade material?
AL – Há muitos lugares onde as atitudes estão mudando. Há, ainda, milhões de pessoas no mundo que vivem na pobreza, que vão dormir com fome e que precisam de ferramentas para chegar até um nível básico de saúde e dignidade. Na outra extremidade, há outros milhões que acreditam que o caminho da felicidade e segurança é no acumulo de riquezas materiais.
Mas essa atitude está mudando. Depois de décadas de longas horas gastas para que se consumissem mais coisas, estamos nos sentido sobrecarregados. Nossas casas estão cheias, nossas garagens estão cheias. Mesmo com o crescimento explosivo do “mini-armazenamento”, a indústria não pode manter-se com todas as coisas que as pessoas têm acumulado. Passamos os finais de semana comprando mais coisas. Por isso, temos menos amigos; estamos mais isolados socialmente, sem perceber que as coisas mais importantes na vida não são as “coisas” que acumulamos.
EF – Que mudanças estão ocorrendo na economia tradicional após a ampliação do debate sobre a sustentabilidade?
AL – É impossível ignorar a gravidade da crise ecológica. Em todo o mundo, muitos líderes já compreendem que o modelo de produção atual, cheio de resíduos, não terá futuro, por isso querem traçar um novo caminho. As empresas estão aprendendo a eliminar produtos tóxicos dos seus processos de produção, a reclicar a água e materiais, e, maciçamente, a reduzir o uso de energia. Claro, ainda existem empresas que estão resistindo às mudanças. Mas elas ainda serão obrigadas a aplicarem iniciativas de sustentabilidade. É possível, dentro de todos os setores produtivos, ter um negócio próspero com princípios da sustentabilidade.
EN – No livro, você relata histórias que mudaram sua percepção sobre as “coisas” e a economia. Qual dessas histórias mais chamou a sua atenção?
AL – A primeira vez que fiquei interessada em como as “coisas” influenciavam a economia foi quando eu ainda era apenas uma estudante da Universidade de Nova Iorque. Todos os dias no caminha para a aula, eu me perguntava sobre a quantidade grande de lixo nas ruas, algo esperando apenas para ser coletado. Me perguntava o que havia nas sacolas e para onde elas eram enviadas.
Certa vez, ainda estudante, fui até o aterro municipal. Foi uma experiência impressionante ver para onde todas as “coisas” iam: eletrodomésticos, roupas, livros, alimentos, calçados, embalagens. Isso me fez pensar que deve haver alguma forma de melhor atender as nossas necessidades sem desperdiçarmos tantos materiais. Então decidi passar os últimos 20 anos estudando isso: para onde as nossas “coisas” vão, o que há nelas e o que podemos fazer de melhor.
Se você ainda não foi ao aterro de sua cidade, recomento veementemente que vá. Ele lhe dará uma perspectiva fascinante sobre a sociedade do consumo que os anunciantes promovem tão fortemente.
EN – Qual o nosso maior desafio? Mudar a economia ou mudar as nossas atitudes?
AL – Precisamos fazer as duas coisas. A crise ecológica e social que enfrentamos é tão grande e tão interligada que todos nós estamos envolvidos. Precisamos mudar nossas políticas econômicas e industriais de modo a promover ambientes saudáveis, sustentáveis e meios justos de produção, assim como nos libertamos dessa obsessão pelo consumo. Basicamente, precisamos apertar o “reset” em nossa sociedade. Precisamos de diferentes tipos de edificações e de um novo planejamento urbano que incentive o transporte público e a congregação entre as comunidades. Precisamos redesenhar produtos para que eles possam estar livres de produtos químicos tóxicos e terem maior durabilidade. Precisamos de um sistema de gestão dos resíduos que incida sobre a reutilização e não apenas na queima ou soterramento das “coisas”. Com a mudança nas sociedades, os líderes e os empresários serão obrigados a pôr a sustentabilidade em prática. As leis precisam mudar junto com as atitudes. Está tudo interligado.
EN – Ao descrever as suas experiências, você fala de ética, direitos e deveres. Podemos afirmar que a crise no modelo econômico é uma crise ética?
AL – Essa é uma crise ética, física, biológica e social. O nosso atual modelo econômico está destruindo nossos ecossistemas e os recursos que o planeta dispõe, promove o aprofundamento das desigualdades e nega oportunidades para milhões de pessoas. É um sistema que premia alguns enquanto exclui outros, eliminando oportunidades para as gerações futuras. Para superar essas crises, podemos e devemos fazer melhor do que estamos fazendo.
EN – O que você pensa sobre economia verde?
AL – Infelizmente não há uma definição comum para a economia verde. Algumas empresas estão tentando lucrar com um “pacote verde”, mas continuam fazendo o velho: lixos e produtos tóxicos e descartáveis. Elas não estão indo para o caminho da sustentabilidade, mas sim se utilizando de “greenwashing”. No entanto, há uma economia verde que pode significar um sistema que funcione dentro dos limites do planeta, sendo compatível com os sistemas ecológicos que sustentam a vida e que é saudável para as pessoas.
Na verdade, dado que temos de aprender a viver dentro dos limites do planeta, uma economia que pode promover mudanças não deve ser vista como uma opção entre muitas, mas sim como a única opção. E todos nós podemos ajudar a instituir esse modelo econômico. Para isso, precisamos exigir o redesenho e uma revisão completa de nossa economia, e não nos contentarmos com as pequenas e aparentes mudanças que temos visto até o momento.

Livro - Identidades da Educação Ambiental Brasileira

http://www.mma.gov.br/estruturas/educamb/_arquivos/livro_ieab.pdf

A educação ambiental vive um momento histórico. Depois da
Conferência Internacional sobre Conscientização Pública para a
Sustentabilidade, realizada na Grécia, em 1997, o dia primeiro de janeiro
de 2005 ficará marcado na lembrança de educadores ambientalistas em todo
o mundo. Este será o primeiro dia da Década da Educação para o
Desenvolvimento Sustentável (2005-2014).
Sob coordenação da Unesco, essa iniciativa das Nações Unidas,
instituída por resolução de sua Assembléia Geral, procura estabelecer um
grande plano internacional de implementação, tendo como referência os
preceitos da Agenda 21, em seu capítulo 36. Assim, os governos são
chamados a aderir às medidas necessárias para a aplicação do que propõe a
Década em seus planos e estratégias educativas.
O interessante é que mais do que por sua abrangência, essa convocação
atualiza o desafio paradigmático da educação ambiental quando a nomeia
como Educação para o Desenvolvimento Sustentável.
Inspirados por este desafio e, como governo, convocados a participar
da iniciativa, nos sentimos mobilizados. O primeiro passo é apresentar este
painel com retratos da educação ambiental brasileira, destacando algumas
entre aquelas denominações que vêm despontando pelo país: educação
ambiental crítica, emancipatória ou transformadora, ecopedagogia, educação
no processo de gestão ambiental ou ainda, alfabetização ecológica. O
mosaico de reflexões reunidas nesse trabalho permite reconhecer
diversidades, convergências, mas sobretudo identidades.
Com “Identidades da Educação Ambiental Brasileira”, o Ministério
do Meio Ambiente, por intermédio do Programa Nacional de Educação
Ambiental, oferece uma oportunidade, uma janela, um olhar introspectivo
para a educação ambiental no Brasil. A razão é simples: continuar
disseminando o diálogo, como essência do intercâmbio, da participação e
do controle social, diretriz da nova política ambiental integrada. Um passo
rumo a sustentabilidade, entre nós e em todo o planeta.

MARINA SILVA
MINISTRA DO MEIO AMBIENTE

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Livro - Bases Filosóficas para a Educação Ambiental

Pensar o Ambiente: 
Bases Filosóficas para a Educação Ambiental
http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/publicacao4.pdf


Pensar o Ambiente oferece aos educadores possibilidades fecundas de leitura e reflexão a partir da contribuição teórico-conceitual de diversos pensadores – Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Bacon, Descartes, Espinosa, Rousseau, Kant, Marx, Freud, Heidegger, Arendt, Gadamer, Vygotsky e Paulo Freire – e do momento histórico em que viveram, incluindo excertos de textos clássicos desses pensadores com a respectiva contextualização social e histórica.

Os autores apresentam referências para que o leitor, mesmo não iniciado em filosofia, possa relacionar natureza/cultura/ambiente e compreender tal relacionamento de maneira contextualizada.

Trata-se, pois, de uma leitura provocativa e útil para professores, gestores, coordenadores pedagógicos, diretores de escola, educadores ambientais e outros educadores preocupados com a diversidade, a cidadania e a inclusão educacional e social.


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Sumário

Os Pré-Socráticos: os pensadores originários e o brilho do ser
Nancy Mangabeira Unger 

Aristóteles: ética, ser humano e natureza
Danilo Marcondes 

Santo Agostinho e São Tomás: a filosofia
da natureza na Idade Média
Alfredo Culleton 

Bacon: a ciência como conhecimento e domínio da natureza
Antonio Joaquim Severino 

Descartes, Historicidade e Educação Ambiental
Mauro Grün

Espinosa: o precursor da ética e da educação ambiental com base nas paixões humanas
Bader Burihan Sawaia

Rousseau: o retorno à natureza
Nadja Hermann 

Kant: o ser humano entre natureza e liberdade
Valerio Rohden

Karl Marx: história, crítica e transformação social na unidade dialética da natureza
Frederico Loureiro 

Freud e Winnicott: a psicanálise e a percepção da natureza – da dominação à integração
Carlos Alberto Plastino 

Heidegger: “salvar é deixar-ser”
Nancy Mangabeira Unger 

Vygotsky: um pensador que transitou pela filosofia, história,
psicologia, literatura e estética
Susana Inês Molon 

A Outridade da Natureza na Educação Ambiental
Mauro Grün 

Hannah Arendt: natureza, história e ação humana
Isabel C. M. Carvalho e Gabriela Sampaio 

Paulo Freire: a educação e a transformação do mundo
Marta Maria Pernambuco e Antonio Fernando G. da Silva 

Posfácio

O pensamento contemporâneo e o enfrentamento da crise ambiental:uma análise desde a psicologia social
Eda Terezinha de Oliveira Tassara 







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Outros livros da coleção Educação para Todos lançados pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do MEC

volume 01: Educação de Jovens e Adultos: uma memória contemporânea
Volume 02: Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03
volume 03: Construção Coletiva: contribuições à educação de jovens e adultos
volume 04: Educação Popular na América Latina: diálogos e perspectivas
volume 05: Ações Afirmativas e Combate ao Racismo nas Américas
volume 06: História da Educação do Negro e Outras Histórias 
volume 07: Educação como Exercício de Diversidade
volume 08: Formação de Professores Indígenas: repensando trajetórias
volume 09: Dimensões da Inclusão no Ensino Médio: mercado de trabalho, religiosidade e educação quilombola
volume 17: Católicos Radicais no Brasil
volume 10: Olhares Feministas
volume 11: Trajetória e Políticas para o Ensino das Artes no Brasil: anais da XV CONFAEB
volume 12: Série Vias dos Saberes nº1: O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje 
volume 13: Série Vias dos Saberes nº2: A Presença Indígena na Formação do Brasil
volume 14: Série Vias dos Saberes nº3: Povos Indígenas a Lei dos "Brancos": o direito à diferença
volume 15: Série Vias dos Saberes nº4: Manual de Lingüística: subsídios para a formação de professores indígenas na área de linguagem
volume 16: Juventude e Contemporaneidade
volume 17: Católicos Radicais no Brasil
volume 18: Série Avaliação nº1: Brasil Alfabetizado: caminhos da avaliação
volume 19: Série Avaliação nº2: Brasil Alfabetizado: a experiência de campo de 2004
volume 20: Série Avaliação nº3: Brasil Alfabetizado: marco referencial para avaliação cognitiva
volume 21: Série Avaliação nº4: Brasil Alfabetizado: como entrevistamos em 2006 
volume 22: Série Avaliação nº5: Brasil Alfabetizado: experiências de avaliação dos parceiros
volume 23: Série Avaliação nº6: O que Fazem as Escolas que Dizem que Fazem Educação Ambiental?
volume 24: Série Avaliação nº7: Diversidade na Educação: experiências de formação continuada de professores
volume 25: Série Avaliação nº8: Diversidade na Educação: Como indicar as diferenças? 
volume 26: Pensar o Ambiente: bases filosóficas para a educação ambiental
volume 27: Juventudes: outros olhares sobre a diversidade
volume 28: Educação na Diversidade: experiências e desafios na educação intercultural bilíngüe
volume 29: O Programa Diversidade na Universidade e a Construção de uma Política Educacional Anti-racista
volume 30: Acesso e Permanência da População Negra no Ensino Superior
volume 31: Escola que Protege: enfrentando a violência contra crianças e adolescentes
volume 32- Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas
volume 33: I Encontro Nacional de Alfabetização e Cultura Popular

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

A experiência audiovisual nos espaços educativos

http://www.scielo.br/pdf/ep/v36n1/a06v36n1.pdf



A experiência audiovisual nos espaços educativos: possíveis interseções entre educação e comunicação

The audiovisual experience in educational spaces: possible intersections between education and communication


Eloiza Gurgel Pires
Universidade de Brasília



RESUMO
O presente trabalho relaciona os campos da comunicação e da educação a partir de uma reflexão sobre a experiência audiovisual no contexto dos espaços educativos. Aponta-se a transversalidade das mídias audiovisuais como um desafio importante para a escola, considerando-se a complexidade do momento histórico em que vivemos e seus processos de construção de subjetividades decorrentes dos novos modos de ler, ver, pensar e aprender. Procuramos encontrar, nas práticas atuais dos espaços de sala de aula, elementos que pudessem fornecer subsídios para aprofundar algumas questões relacionadas ao discurso áudio-imagético dentro de uma perspectiva histórico-cultural, recolocando a questão das poéticas tecnológicas, inserindo a técnica no universo da cultura. Nossa preocupação com relação às referências teóricas para este estudo foi a de não limitar as questões problematizadas nesta investigação a determinados guetos teóricos, sem que, para isso, o objeto de pesquisa sofresse diluições. Assim, trabalhamos com autores que nos ajudaram a transitar por diferentes campos do conhecimento e saberes. Estabelecemos diálogos com o pensamento bakhtiniano; com pesquisadores que estão refletindo sobre as produções audiovisuais contemporâneas; e com autores como José Luiz Braga e Regina Calazans; Martin-Barbero; e David Buckingham que nos permitiram uma visão ampliada sobre a contemporaneidade e as questões significativas dos campos da educação e da comunicação, especialmente as questões relacionadas aos estudos de educação para as mídias.
Palavras-chave: Educação — Comunicação — Meios audiovisuais — Contemporaneidade.

ABSTRACT
This work draws relations between the fields of communication and education based on a reflection about the audiovisual experience within the context of educational spaces. The transversal character of the audiovisual media is pointed out as an important challenge for the school, considering the complexity of the historical moment in which we live, and its processes of construction of subjectivities attending new ways of reading, seeing, thinking and learning. We try to find within the current practices in classrooms aspects that could give us elements to examine some of the questions concerning the audio-image discourse under a cultural-historical perspective, repositioning the issue of technological poetics, and inserting technique into the universe of culture. Special care was taken with respect to the theoretical background for this study to avoid limiting the issues problematized in the investigation to certain theoretical ghettos, without, nevertheless, allowing the object of research to become diluted. We have, therefore, worked with authors that helped us to traverse different knowledges and fields of knowledge. We established dialogues with the Bakhtinian thought, with researchers that are reflecting on contemporary audiovisual productions, and with authors such as José Luiz Braga and Regina Calazans, Martin-Barbero and David Buckingham, who gave us a wider view of contemporaneity and of the significant issues in the fields of education and communication, particularly of the questions related to the education studies for the media.
Keywords: Education — Communication — Audiovisual media — Contemporaneity.



Nosso sistema escolar construiu, durante um longo tempo, processos interacionais essencialmente baseados no relacionamento face a face e na palavra escrita. No entanto, o século XX ampliou, com as novas tecnologias, o leque de possibilidades de novas integrações direcionadas para diferentes objetivos e processos sociais, o que não poderia deixar de incidir sobre a educação.
Em uma sociedade mediatizada, deparamo-nos não apenas com diferentes "saberes", mas com múltiplas formas de mediação e difusão desses saberes. Consequentemente, são modificados os modos de aprender relativos a esses saberes. Vale ressaltar que, no atual momento civilizatório, a tecnologia não agrega somente novos artefatos e novos modos de fazer, introduz também outra dinâmica em que o tempo e o espaço são reelaborados, produzindo novas formas de relacionamento entre as pessoas. Estas continuam buscando um sentido para sua existência que, para Bakhtin (2003), é encontrado nas relações estabelecidas por intermédio da linguagem, portanto, na comunicação.
Todavia, na relação entre educação e comunicação, é muito comum reduzir o campo da comunicação à sua dimensão instrumental ou ao uso dos meios, deixando escapar algo que seria estratégico: a inserção da educação nos complexos processos comunicacionais da sociedade atual, considerando um sistema difuso de informações, a interseção de linguagens e o descentramento de saberes em relação aos centros da escola e livros que organizam nosso sistema educativo. Para Martin-Barbero (2000), a difusão de conhecimento é uma das questões mais importantes que a comunicação propõe hoje para a educação. Para o autor, no nosso sistema escolar, constata-se que não só existe o preconceito com relação à oralidade cultural, como também com relação à cultura audiovisual: uma atitude defensiva diante do desafio de reconhecer um novo ecossistema comunicativo, no qual emerge outra cultura, com novos modos de ler, ver, pensar e aprender.
Por outro lado, ao relacionar os campos da educação e da comunicação, observamos que o educacional se coloca, inevitavelmente, como uma questão central para as novas interações da comunicação social. Portanto, a cada invenção tecnológica, a sociedade atribui aos processos comunicacionais surgidos dos novos meios uma expectativa educacional, podendo-se afirmar que os dois campos se invadem, estão entrelaçados. José Luiz Braga e Regina Calazans (2001) afirmam que
[...] as preocupações comunicacionais da Educação, e as preocupações sobre aprendizagem na Comunicação, parecem de algum modo penetrar os dois campos originais na sua totalidade e fornecer-lhes novos ângulos e questões para observação. (p. 56)
Aqui, interessa-nos abordar os relacionamentos entre comunicação e educação a partir de uma reflexão sobre a experiência audio-visual nos espaços educativos, apontando a transversalidade das mídias audiovisuais como um desafio importante para a escola, pois, apesar de todas as transformações sociais e tecnológicas da contemporaneidade, um processo de produção audiovisual no espaço escolar induz a interesses e comportamentos que perturbam o seu quadro habitual conformado pelas velhas práticas que há muito tempo atuam com uma racionalização disciplinadora, separando os saberes — idades, o pensar do sentir, o trabalho do ócio. Ao contrário, a cultura midiática não separa o sensível do inteligível; a atividade reflexiva do entretenimento. Desse modo, a produção midiática nos espaços escolares nos remete à dimensão emotiva, ao imaginário e às mitologias da nossa época, introduzindo elementos perturbadores às disciplinas clássicas. É preciso considerar que essa "turbulência" poderá gerar uma renovação. Cabe-nos indagar sobre os processos de apropriação e ressignificação dos códigos audiovisuais nas expressões e manifestações culturais dos espaços educativos, e as novas leituras e escrituras daí advindas.

A linguagem videográfica
A dimensão social do conhecimento ocorre na interação do sujeito com os objetos e com outros sujeitos, no confronto, na troca de concepções, ideias, teorias, sentimentos e desejos. Essa interação social, geradora de cultura (conhecimento), torna-se possível por intermédio da linguagem: "A cultura, que é característica da sociedade humana, é organizada/organizadora via o veículo cognitivo que é a linguagem" (Morin, 1992, p. 17). Transformamos o invisível em visível por meio da linguagem, que constrói uma visão tátil, um pensamento visível. A palavra transforma-se em ato. Revelamos o mundo e nos revelamos para o mundo.
O homem cria a si próprio e o mundo em que vive, tornando-se sujeito na linguagem. Ocupa um lugar determinado no espaço e revela o seu modo de ver o outro e o mundo físico que o envolve. Assim, a palavra (pensamento) e o olhar (imaginário) constituem o sentido que conferimos à experiência de estar no mundo. A cultura grega, acentuadamente plástica, não separava o ver do pensar. Eidos, forma ou figura, é termo afim de idea. Em latim,video (eu vejo) e idea. Para os gregos, o conceito de téchne se relacionava ao fazer criativo — poiesis — do homem. Ao contrário do pensamento moderno, homem e tecnologia não eram reconhecidos como opostos, não havendo a possibilidade de conceber o ser humano cindido em sujeito e objeto do conhecimento, como se estivesse retalhado em diferentes componentes de si mesmo. A visão dicotomizada da realidade produzida pela epistemologia clássica afetou nossa sensibilidade teórica e cristalizou alguns conceitos que se formaram a partir da construção de uma espacialidade que determinou o "dentro" e o "fora" no ser. Com o racionalismo mutilador da modernidade, emergem as dualidades mente e corpo, dentro e fora, pensamento e imaginário.
Nos dias atuais, os meios híbridos possibilitaram a criação de imagens falantes e em movimento. Os elementos da linguagem verbal e da linguagem visual podem hoje coexistir num mesmo espaço. No entanto, muitos intelectuais ainda mantêm certa suspeita com relação à imagem e aos novos meios, como se fosse possível separar o imaginário do pensamento. Por outro lado, alguns autores (Philippe Dubois; Machado; Parente; Bellour e outros) põem em questão o aspecto iconoclasta dos discursos sobre a imagem, ressaltando o potencial criativo das subversões poéticas nas explorações dos meios audiovisuais.
O surgimento do vídeo nos anos 1960 provocou uma ruptura sem precedentes no universo das imagens técnicas pelas experimentações e formas de apropriação que esse meio possibilitou. A escrita eletrônica do vídeo instaurou novas formas de linguagens, estéticas próprias das imagens híbridas, pós-cinematográficas (eletrônicas e digitais). Trata-se de uma imagem tecnológica que sempre teve problemas de identidade, pois surge entre o cinema e a imagem infográfica, transitória e marginal entre universos de imagens fortes e bem definidas. Movimenta-se entre a ficção e o real, o filme e a televisão, a arte e a comunicação. Foi mais explorado em suas formas pelos artistas (videoarte) e no espaço doméstico (vídeo familiar, vídeo privado, documentário etc.), estando entre as esferas artística e midiática. Ele é objeto e processo, público e privado, pintura e televisão, sem ser um nem outro, ou sendo ambos, com um senso constante do ensaio, da pesquisa, da experimentação, da inovação.
Os modos de criação videográfica relativizaram o modelo narrativo, desenvolvendo uma linguagem, ou estética particular (mas não exclusiva), que põe em jogo questões diferentes daquelas já expostas pelo cinema e, ao mesmo tempo, constituem uma forma que pensa, um estado da imagem. O vídeo pensa o que as imagens (todas e quaisquer) são, fazem ou criam:
O vídeo é o material formal e intelectual no qual se processa a reflexão sobre a, da ou com a televisão. Ou, melhor dizendo, que gera, que inventa, que lhe dá corpo e ideias. Há uma espécie de "potência de pensamento" na e pela imagem que me parece existir no coração da forma vídeo. O "vídeo" seria então, neste sentido e literalmente uma forma que pensa. Um pensamento da imagem em geral – e não apenas da televisão. (Dubois, 2004, p. 113)
Para Dubois (2004), o vídeo não é o outro da televisão, não é o lado estético que ela não gostaria de assumir, não é a sua contraideologia, mas uma maneira de pensar a televisão com suas próprias formas. Machado (1997) entende que a diferença entre TV e vídeo está na intensidade:
Produzido e difundido fora do circuito televisual, pode investir no aprofundamento da função cultural da televisão, avançando de um lado, na experimentação da linguagem eletrônica, e buscando exprimir, de outro, as inquietações mais agudas dos homens do nosso tempo. Ele executa no domínio da televisão, uma função cultural de vanguarda, no sentido produtivo do termo: ampliar os horizontes, explorar novos caminhos, experimentar novas possibilidades de utilização, reverter a relação de autoridade entre produtor e consumidor, de modo a forçar um progresso da instituição convencional da TV, demasiadamente inibida pelo peso dos interesses que são nela colocados em jogo. (p. 10)
Essa produção qualitativa acaba interferindo na prática cotidiana da TV comercial ou pública, havendo um avanço com a introdução de novas tecnologias e com as práticas alternativas de TV, como as TVs comunitárias, piratas, a cabo etc. Na atualidade, a imagem eletrônica destila outra sensibilidade, colocando-nos novos problemas de representação, abalando antigas certezas, reformulando conceitos estéticos, o que Benjamin detectou em um novo sensorium dos modos de percepção, ao fazer uma análise do cinema e dos novos modos de produção das imagens técnicas nos anos 1930.
O que chamamos de "linguagem" das formas audiovisuais não pode ser confundido com o sentido que se dá à linguagem verbal. A gramática do vídeo, assim como seu processo de articulação de sentido, é diferente da gramática das mensagens verbais. Não há uma tábua de valores ou gramática normativa que exponha o que se pode e o que não se pode fazer em vídeo, até porque se trata de um meio que possui um sistema híbrido, operando com diversos códigos significantes – do cinema, do teatro, da literatura, do rádio e, atualmente, também da computação gráfica: "o discurso do vídeo é impuro por natureza" (Machado, 2005, p. 190).
O vídeo surgiu num contexto histórico em que não se acreditava mais em uma "gramática específica" para os meios audiovisuais, pois os códigos videográficos não têm a mesma consistência e estabilidade das linguagens verbais, sendo impossível reduzi-los a um conjunto de regras esquemáticas.
No entanto, o vídeo também é um fenômeno de comunicação, que se dissemina de forma processual e não hierárquica no tecido social, confundindo os papéis de produtores e consumidores, podendo resultar daí um processo de troca e de diálogo não muito comum em outros meios. No entanto, para que haja comunicação, é preciso haver estruturas significantes, que sejam inteligíveis a emissores e receptores. Então, se algo é transmitido pelo vídeo, haverá comunicação se as formas operadas e os modos de articulação forem comuns a todos os envolvidos nesse processo. Ainda que esse algo não possua uma lei ou língua natural, possui uma linguagem ou sistema significante que garante sua inserção como canal de expressão numa sociedade.
O caráter híbrido do produto videográfico mostra-se mais rico na medida em que se mostra aberto à intervenção do espectador, mesmo na manipulação física dos equipamentos e das fitas. Para Machado, as possibilidades tecnológicas dos novos meios estão em permanente mutação, crescendo na mesma proporção das obras produzidas, sendo importante reconhecer a importância do ato criador que subverte a função da máquina, sua produtividade controlada e que reinventa sua função e suas finalidades. Isso é o que redefine nossa maneira de produzir e de nos relacionar com determinado meio.

A linguagem audiovisual como um fato da cultura
Nos anos 1930, Walter Benjamin (1996) chamava atenção para um novo sensorium nos modos de percepção da realidade na sociedade moderna com a reprodutibilidade técnica da imagem. Em uma comparação, ele confronta o teatro e o cinema como duas experiências distintas de se vivenciar a realidade e de se relacionar com a imagem: o teatro oferece um campo visual que permite ao espectador preservar o caráter ilusionístico da cena, enquanto no cinema a natureza ilusionística está no resultado da montagem. O cinegrafista, segundo Benjamin (1996), penetra visceralmente a realidade, enquanto o pintor mantém certa distância da realidade dada e dele próprio. Surgem novos conhecimentos e novas formas de expressar os imaginários.
Nos dias atuais, o modo como nos apropriamos das imagens técnicas pode redefinir os modos de ver e de ser visto, a nossa própria maneira de entender e lidar com os meios, ou de reinventá-los. Cada vez mais um número maior de pessoas tem acesso a celulares e a máquinas fotográficas que filmam, produzem textos; brinquedos eletrônicos que tornam o homem comum uma unidade móvel produtora de informação, de textos, de imagens. O sujeito contemporâneo tornou-se espectador e produtor de suas próprias mensagens. Surgiram diferentes espaços e temporalidades a partir do uso da tecnologia do audiovisual nas novas produções de subjetividade, que emergem do uso dos novos meios no espaço doméstico, nas culturas juvenis, no cotidiano das escolas, nas associações comunitárias etc.
A década de 1970, início de 1980, especialmente no Brasil, foi um momento importante para a exploração das imagens videográficas no âmbito da cultura popular. Nesse momento, as câmeras de vídeo começam a ser vendidas a preços populares, sinalizando a intenção dos fabricantes em transformá-las em eletrodomésticos. Havia também a intenção de recuperar o tempo perdido com a ditadura militar, buscando-se, nas populações de excluídos e entre os trabalhadores, novos atores para a construção de uma nova sociedade. São criadas associações, núcleos, centros culturais ou de estudos, que mais tarde iriam se transformar no que conhecemos hoje como organizações não governamentais — as ONGs. Muitas dessas organizações iniciaram produções em vídeo que refletiam uma questão fundamental relacionada a essa mídia: a linguagem e seus usos. A maioria dos movimentos populares que se utilizavam do vídeo foi influenciada pela Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire (1970). Nesses projetos, a comunicação popular buscava seus termos nos próprios sujeitos da ação, com a câmera aberta — intervenção feita após a exibição de um vídeo, em que o debate ou intervenção do público é realizado a partir das imagens mostradas ao vivo.
Em 1984, em Olinda, Pernambuco, no Centro Luiz Freire, surge a TV Viva. Uma TV de rua que ia aos bairros da periferia levando programação de vídeo que muitas vezes contava com a participação da população. Em 1986, surge em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, a TV Maxambomba, também um experimento de rua, inspirado na TV Viva e em experiências do Chile, investindo na ideia de propor aos moradores dos bairros onde era exibida que produzissem seus próprios programas.
Diferentes processos de comunicação popular surgem nos bairros, nas escolas e nos grupos organizados. Em 1996, é criada a TV Pinel — TV comunitária do Instituto Psiquiátrico Phillipe Pinel, Ministério da Saúde — em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro. O educador baiano Valter Filé (2000) localiza nessas experiências algumas questões em comum: havia a perspectiva de criação de um espaço de audiência pública e coletiva que recuperasse o espaço da praça, das ruas, numa celebração do reencontro entre as pessoas e delas com questões relacionadas às suas vidas, às culturas e ao lazer. Outra questão seria o acesso das populações aos meios tecnológicos, experimentando sua linguagem e dando novos sentidos ao seu uso.
No campo da educação, essas questões nos remetem a uma discussão sobre os processos subjetivos, nos quais os jovens não são apenas representados no "discurso/imagem" da mídia, mas se tornam sujeitos de uma narrativa audiovisual atualizada no vídeo. Processos subjetivos ou produção de subjetividade não devem ser entendidos aqui do mesmo modo como propõe o discurso "psi", mas em consonância com o pensamento de Felix Guattari (1992), entendemos subjetividade como um processo de produção de significados ancorado em referentes humanos, materiais e imateriais, referentes que podem ser encontrados tanto nas tensões geradas pelo capitalismo transnacional como nas manifestações culturais e nas expressões artísticas. O autor nos sugere um redimensionamento da subjetividade em instâncias individuais, coletivas e institucionais, sem haver qualquer hierarquia entre elas. Em outras palavras, compreendemos os processos subjetivos não apenas na esfera de uma interioridade psíquica, em instâncias inconscientes ou egóicas, mas dentro de um contexto histórico-político-cultural.
Nesse contexto, a evolução tecnológica, as relações espaço-temporais e a produção de imagens, a cultura massificada e a reprodutibilidade da arte, assim como a mídia hegemoneizada pela televisão são fatores fundamentais para o entendimento da produção da subjetividade contemporânea.
Hoje, verifica-se uma crescente produção audiovisual de jovens veiculada na internet; é possível encontrar projetos de produção de vídeos nas escolas; proliferaram os cursos de cinema e audiovisual. Ao redimensionarem os valores de uma ordem já estabelecida em um mundo concreto, sensível, visível, dinâmico, numa fusão de valores e tradições, os jovens ampliam as possibilidades do olhar. Numa produção midiática, criam representações de seu próprio grupo em suas histórias, como forma de definir identidades e de negociar amizades, o que evidentemente envolve trabalho coletivo. A escola, inevitavelmente, torna-se um espaço para as negociações entre concepções de conhecimento e valores culturais.
As negociações entre professor e aluno concretizam diversas experiências culturais, fazendo da realidade um plano multifacetado, no qual os sujeitos aprendem a pensar o "eu" e o "outro" num processo interativo, aproximando, justapondo os contrários, situando o olhar nas fronteiras. Nesse contexto, a produção audiovisual nos espaços escolares nos remete ao pensamento de que vivemos um momento histórico em que a mídia eletrônica deveria ser encarada — ao contrário daquilo que muitos discursos apocalípticos pregam — como um fato da cultura, que exprime nossa complexidade e nossas contradições.

Apropriação da linguagem audiovisual
As novas propostas curriculares apontam três formas de educação midiática: educar pela, com e para a mídia. Embora apresentadas separadamente, as três perspectivas estão relacionadas na reconfiguração dos espaços escolares e nas relações entre o conhecimento e os sujeitos do conhecimento, sendo o professor um importante mediador.
A perspectiva de educar pela mídia é mais conhecida no meio educacional como Educação a Distância (EAD). Nessa modalidade, torna-se possível a utilização de diferentes mídias (cursos por correspondência, aulas por rádio, teleaulas e educação on line) na aproximação entre sujeitos e conhecimentos, proporcionando diferentes formas de organização do tempo-espaço do estudo.
A Educação com a mídia já ocorre em muitas escolas, apesar de se considerar a necessidade de uma exploração mais efetiva das variadas potencialidades dos meios. Tal modalidade pressupõe o conhecimento das diversas possibilidades desses meios para os processos de ensino e de constituição de novos conhecimentos, valores e atitudes. Trata-se da produção de jornais impressos, revistas, blogs, vídeos etc., tornando-se necessário adequar os meios ao tratamento de um determinado assunto em uma situação específica.
A última perspectiva – educar para as mídias – é a que se apropria de forma crítica de diferentes meios, suas linguagens e estéticas, o que implica experiências voltadas para os seus modos de produção.
Todavia, autores como David Buckingham (2005) advertem que a educação para as mídias – educar e aprender sobre a mídia – não deve ser confundida com ensinar através ou com a mídia, não se tratando, portanto, de tecnologia educacional ou mídia educativa. Pela importância social, cultural e econômica da mídia nas sociedades modernas, ele considera essencial uma educação que possibilite aos jovens uma visão mais ampla do universo midiático, pois meios de comunicação fazem parte do nosso cotidiano, fornecendo-nos "recursos simbólicos" que usamos para conduzir e interpretar nossas relações e definir nossas identidades.
Para o educador e pesquisador Buckingham (2005), a mídia não é uma janela por onde podemos ver os acontecimentos do mundo, mas um espaço que fornece canais por meio dos quais representações e imagens do mundo são comunicadas indiretamente. O autor considera como "mídia" todos os modernos meios de comunicação – televisão, cinema, vídeo, fotografia, rádio, publicidade, jornal e revistas, CDs, jogos de computador e Internet, incluindo também o livro por tratar-se de uma "mídia" que nos dá uma versão ou representação do mundo.
Assim como Gonnet (2004), tendo em vista uma combinação dos textos da mídia de diversas linguagens ou formas de comunicação – imagens visuais (paradas ou em movimento), áudio (som, música ou fala) e a linguagem escrita –, Buckingham (2005) concebe uma ideia de alfabetização midiática que envolve necessariamente a leitura e a escrita da mídia, desenvolvendo a compreensão crítica e a participação ativa dos jovens que, além de fazerem seus próprios julgamentos como consumidores da mídia, deverão explorar a linguagem midiática em suas próprias produções.
Numa aventura com câmera e vídeo, os alunos descobrem a necessidade de elaborar roteiros, redigir um fio condutor, escolher lugares para a filmagem, assim como as funções necessárias à produção da obra (filmagem, montagem, sincronização). A respeito dessa descoberta, surgem algumas questões. O que suscitam essas ações? Sempre uma forte mobilização. Personalidades se descobrem por meio de outra maneira de conceber a escola. Algumas delas vêm à mente naturalmente: Como traduzir um sentimento em imagens? Como se colocar em face da câmera? Deve-se fazer como na televisão ou tentar inventar outro estilo? (Gonnet, 2004) É certo, entretanto, que os alunos também descobrem com as regras de trabalho produtivo, num contexto coletivo, as responsabilidades que isso implica.
No contexto da educação para as mídias, a produção não é um fim em si. Os jovens se apropriam da linguagem midiática para expressar suas ideias e sentimentos de forma criativa ou por meio da Arte. Usam a mídia também para comunicação, sem reduzir esse fazer a um treinamento técnico, sendo necessário o estabelecimento de uma relação dialógica entre professor e aluno e entre os próprios alunos numa permanente negociação. Há também a preocupação em compreender a linguagem audiovisual não como um sistema fechado, mas processual, por meio do qual são construídas as representações e onde acontecem interações – espaço aberto a múltiplas leituras. O aluno é contextualizado como produtor e espectador de sua própria mensagem, visto como sujeito histórico, social e cultural, e não apenas como interlocutor, mas como sujeito criativo, transformador.
O conceito de "apropriação", também utilizado por Canclini (1998), ao se referir à interação entre elementos de variadas sociedades, sugerindo um diálogo entre as diferenças, deve ser entendido aqui como formas diferenciadas de interpretação, intervenção criativa, apropriação cultural (Chartier, 1988), e não no sentido de uso de poder ou confisco (Foucault, 1971):
[...] a diversidade das leituras, que não forçam o texto. Distancia-se do sentido que Michel Foucault dava ao conceito quando considerava 'a apropriação social dos discursos' como um dos procedimentos mais importantes através dos quais esses discursos eram confiscados e submetidos, colocados fora do alcance de todos aqueles cuja competência ou posição impedia o acesso aos mesmos. [...] A apropriação, tal como a entendemos, tem por objetivo uma história social das interpretações, remetidas para suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem. (Chartier, 1988, p. 26)
Para Chartier (1988), além da noção de "apropriação", a noção de "representação" é fundamental dentro de um contexto sociocultural em que uma determinada realidade é construída, pensada, dada a ler, o que implica uma relação ambígua entre ausência e presença. No caso, a representação é a presentificação de um ausente, que é dado a ver segundo uma imagem, mental ou material, que se distancia do mimetismo puro e simples e trabalha com uma atribuição de sentido. Seria uma versão da realidade, não uma apresentação, mas representação. Todas as representações são simbolicamente mediadas, ou seja, todo conhecimento humano é constituído em todas as suas formas de representações, com suas linguagens, pelos seus processos de significações. Nas representações, podem estar implícitas variadas identificações, entendendo-se "representações" como tradução mental ou material da realidade, formas, imagens, sons, textos etc. que determinam a definição que o sujeito dá a si mesmo e o lugar que ocupa dentro de um sistema de relações, havendo, aí, um "outro", que inclusive pode ser a alteridade do "si mesmo", e que reconhecerá (identificará) as representações que classificam o sujeito socialmente.
Nesse sentido, todo conhecimento humano é uma construção simbólica com seu modelo próprio de articulação, pois cada comunidade estabelece sua sociabilidade, baseada nas próprias linguagens e leituras. Assim, as ideias e as representações figuram no cotidiano, estruturando as percepções, as convivências sociais e os modos de estar no mundo, coletivo e individual.
Diferentes conceituações abrem caminhos analíticos, que oferecem diferentes olhares sobre o movimento das imagens no mundo. As representações, seja na sua dimensão simbólica, seja nas suas formas concretas de manifestação, estão ligadas aos contextos histórico e social. Na sua natureza de produção humana e social, elas têm uma dimensão interna e externa aos indivíduos que percebem e são afetados pelas imagens.
No entanto, se considerarmos também o contexto cultural além dos contextos social e histórico, encontraremos um ponto de convergência entre as representações e as apropriações. Martin-Barbero (2003) chama de "mediações" os lugares ou contextos culturais em que acontecem os processos de apropriação da imagem. Ao propor a análise das mediações, o autor não se limita apenas a analisar as imagens, mas a compreender a maneira como lidamos com elas. Assim, somos deslocados do terreno das representações, das imagens, dos produtos em si mesmos e conduzidos para o terreno da história, da cultura, da experiência, do cotidiano.
Nesse contexto, o embate entre diferentes vozes sociais sugere que não há sentido fora da relação com o outro, ainda que o sujeito seja o outro de si mesmo ou o outro das vozes que circulam o seu discurso. Nesse sentido, Hall (2005) define a identidade como a própria incompletude do sujeito, que se reconhece no olhar do outro: aquilo que, no sujeito, não pode ser visto por ele mesmo é mediado pelo olhar do outro, do seu ângulo de visão. Isto é, aquilo que o sujeito não sabe sobre si mesmo se revela na relação com o outro. A construção da consciência que o sujeito tem de si se constitui no modo como ele compartilha o seu olhar com o olhar do outro. Dessa forma, cria-se uma linguagem que permite a comunicação no contexto das relações socioculturais.
Em uma experiência com as câmeras, o olhar das pessoas se expande, buscando novas formas de interlocução e de revelação. Observa-se que a sensação de estranhamento é relatada por quase todas as pessoas que viram a própria imagem reproduzida na tela. A experiência da mediação da imagem técnica proporciona outra visibilidade ao sujeito em relação a si mesmo, desencadeando, paradoxalmente, o sentimento de estranhamento daquilo que lhe é familiar: a sua própria imagem. Ele percebe que há algo não reconhecível em relação a si próprio, podendo, posteriormente, incorporar essa nova imagem, assumindo-a como familiar. Nesse momento, vivencia-se uma experiência de transformação da consciência de si.
A relação entre o sujeito e as possibilidades oferecidas pelas câmeras é também uma relação ambivalente, pois se a sensação de perda de controle da própria imagem e do discurso representa uma ameaça, causando as inibições, a relação com a própria imagem é também algo que seduz.
Nas palavras de Souza (2003), ser visto no vídeo "seduz porque no centro da consciência de sermos sujeitos efêmeros existe o desejo de permanência da nossa própria imagem, da nossa presença no mundo, experiência que agora é recriada pela técnica" (p. 86). A autora afirma que, quando o sujeito se coloca em frente às câmeras, ele sabe que sua imagem se deslocará, ganhando uma existência própria, sendo, posteriormente, retomada por outras pessoas em infinitas interpretações. De modos diversos, esse efeito é também alcançado na apropriação de outras linguagens como, por exemplo, a escrita.
Nos relatos de muitos jovens, é possível perceber que, enquanto alguns se sentem mais à vontade filmando, outros preferem se expor como apresentadores, entrevistados, dançarinos ou contadores de histórias. No momento em que se apropriam dos códigos audiovisuais nas suas criações ou como forma de comunicação, torna-se importante o conhecimento da técnica e da linguagem. Com esse conhecimento, estabelecem diferentes formas de se relacionarem com as câmeras, com o mundo, com eles mesmos e com o outro. Nesse relacionar-se, surge a sedução pela própria imagem que, como disse Souza (2003), é a expressão do desejo de permanência dessa imagem no mundo. Entretanto, é também aquilo que Maffesoli (2004) considerou como o "perder-se no outro", ao se referir a um reencantamento do mundo favorecido pela tecnologia, acentuado pelo renascimento da imagem como um importante elemento do vínculo social. Quando as pessoas se veem no vídeo, essa imagem está situada fora e diante de si. Portanto, elas veem a outro, relacionam-se com a dimensão alteritária de si mesmas.
No espelho, as imagens são invertidas, vê-se a simultaneidade dos gestos e há uma confusão entre aquele que está na imagem e o próprio sujeito. Para Bakhtin (2003), nossa situação diante do espelho é sempre um pouco falsa, pois como não dispomos de um enfoque de nós mesmos de fora, recorremos a outro possível e indefinido, que nos ajudará a encontrar uma posição ou uma forma para nós mesmos. Nossa relação com a imagem externa, segundo ele, diz respeito, inicialmente, não à estética, mas ao seu eventual efeito sobre os outros. Assim, avaliamo-nos não para nós mesmos, mas para os outros e por meio dos outros: posamos diante do espelho, procurando a expressão que nos parece ser a ideal, essencial e desejada. Trata-se da construção de diversas vozes sociais ou olhares, que costuram a nossa imagem externa. Os "outros" de que fala Bakhtin, aqueles com quem nos relacionamos, são constituintes do nosso imaginário, na representação que fazemos de nós mesmos. Nas telas audiovisuais, a imagem é captada pela lente de uma câmera manipulada por alguém que, através do seu olhar, redimensiona o tempo e o espaço vividos, reproduzindo essa imagem em espelhos eletrônicos, que nos trazem informações novas, inusitadas e, às vezes, constrangedoras sobre nós mesmos. A escola adquire, nesse cenário, uma importância estratégica e decisiva dando voz aos novos sujeitos do discurso e potencializando a figura do educador, que de retransmissor de conteúdos converte-se em formulador de problemas, provocando interrogações e possibilitando o diálogo entre culturas e gerações.

Educação midiática e cidadania
Benjamin (1996) afirma que, nos espaços históricos de tempo e da existência da coletividade humana, modificam-se o modo e a maneira da percepção sensorial, o que, segundo Martin-Barbero (2000), remete-nos a transformações na maneira de nos relacionarmos, de nos reconhecermos e de nos juntarmos. É o que experimentam os mais jovens quando se apropriam das novas linguagens, uma vivência desvalorizada por muitos adultos.
O vídeo constitui uma ferramenta e um dispositivo pedagógico importante para os adolescentes por sua capacidade de visualizar os próprios conflitos e o dos outros, por sua ludicidade e tecnicidade e por permitir a participação de todos, ainda que alguns se situem atrás da câmera, protegidos da emoção ou do choque de um confronto direto com o outro e/ou com a sua cultura. Por mais paradoxal que isso possa parecer, é também uma situação que pode se transformar numa abertura em direção ao outro, ou seja, dentro de uma relação dialógica, o eu e o outro veem o mundo de perspectivas diferentes. Isso não significa que estão incomunicáveis, mas em uma experiência audiovisual, de lugares diferentes, uma negociação permanente de produção de linguagem torna-se possível com a mediação da câmera.
Em uma reflexão ampliada, podemos perceber que o cenário em que se constituem e se movimentam os sujeitos sociais é um espaço midiatizado, em que as relações, os valores e a consciência se deparam com uma nova ordem cultural, na qual as mídias eletrônicas constituem, segundo Sodré (2002), um novo bios, um novo modo de presença do homem no mundo. A cultura, resultante de um complexo ecossistema comunicativo, atua na construção da realidade social. A mídia é, então, estruturadora de percepções e cognições, atuando sobre as identidades culturais, a educação, o mundo do trabalho, o exercício de cidadania e a percepção do tempo.
Fala-se muito em cidadania. Com frases feitas que saem quase que automaticamente no discurso dos educadores, os jovens "aprendem" o que devem fazer para serem "cidadãos". Entretanto, será que, em algum momento, a escola desperta neles uma consciência cidadã ou o desejo de ser cidadão? Os alunos imaginam a escola como um espaço seu?
Ser cidadão na contemporaneidade é pertencer a uma coletividade organizada. O pertencimento cidadão não é passivo. Pelo contrário, a cidadania implica uma postura ativa, na qual a participação "naquilo que é feito" marca o processo de construção do cidadão. E é no exercício de suas cidadanias que os indivíduos, a partir dos seus pertencimentos, criam novas formas de ação para atuar no espaço coletivo, recuperando a noção de comunidade (Quiroga, 2002).
A diversidade e a pluralidade marcam a condição de pertencimento e a reflexibilidade do indivíduo contemporâneo. A construção da cidadania como processo social mais amplo implica, entre outras coisas, considerar as comunidades e as esferas mais privadas como espaços sociais dos indivíduos, de construção de identidades, acolhendo as diferenças sociais e culturais pelo que elas representam, por seu dinamismo e riqueza social.
A emergência de um novo paradigma para a educação dentro de um ambiente midiatizado pode ser detectado no pensamento de educadores e pesquisadores que, contrariamente à ideia do jovem como simples vítima passiva das influências da mídia, acreditam que a educação pode ser um processo instigante de descoberta de novas atuações e de participação cidadã. Longe de ser uma forma de proteção, a educação midiática é uma forma de preparação, que desenvolve nos jovens a compreensão e a consciência social de pertencimento dentro de um determinado universo cultural.
Para Buckingham (2005), nessa perspectiva, a produção dos estudantes tem importância significativa, pois é o momento em que suas vozes são ouvidas. Não cabe aos educadores colocarem-se na posição de "legisladores", impondo valores e normas da cultura oficial, pois os jovens estão crescendo numa sociedade heterogênea, multicultural, com diferentes concepções de moral e diferentes tradições culturais que coexistem lado a lado. Vale ressaltar a importância de se questionar, em um processo de produção audiovisual, a "identidade política" forjada por uma educação que enfatiza a racionalidade e uma concepção "realista" de representação, assim como a própria noção de cidadania e de democracia em que estão baseadas.

Algumas considerações
Para Martin-Barbero (2003), "mais do que meios, a comunicação se faz hoje questão de mediações, isto é de cultura" (p. 20). O autor alerta para o surgimento de um imaginário que inaugura "uma nova era do sensível", e que fala culturalmente, não sendo usado apenas como manipulação:
[...] a cumplicidade e interpenetração entre oralidade cultural e linguagens audiovisuais não remetem – como pretende boa parte de nossos intelectuais e nossos anacrônicos sistemas educativos – nem às ignorâncias, nem aos exotismos do analfabetismo, mas a descentramentos culturais que em nossas sociedades estão produzindo os novos regimes de sentir e de saber, que passam pela imagem catalisada pela televisão e pelo computador. (Martin-Barbero, 2000, p. 84)
Com essa concepção, é possível compreender os usos e as apropriações dos meios a partir das mediações: "lugar" ou contexto cultural em que a interação entre a produção midiática e a recepção não acontece apenas na perspectiva de interesses industriais ou estratégias comerciais, mas também a partir de uma trama cultural, nas práticas sociais, no cotidiano das pessoas e nos modos de ver — espaços nos quais são construídas nossas representações identitárias.
Entendendo os valores culturais como construtos de diferentes linguagens, os modos como nos apropriamos das linguagens definem nossa relação com as tecnologias e com os meios de comunicação, que podem ser pensados não apenas na sua dimensão instrumental, utilitária — para ampliar as comunicações —, mas também como suportes para as experimentações artísticas, como formas de entretenimento, enfim, na expressão de sentimentos e saberes.
Os deslocamentos, as contradições e a heterogeneidade temporal e espacial das sociedades nos tempos atuais nos remetem a novos parâmetros para compreender a cultura e a comunicação. O objeto do campo da comunicação é, nas palavras de Rüdiger (1998), "uma espécie de mediação cotidiana do conjunto das relações sociais, da difusão das ideias e da formação das condutas que têm lugar na sociedade" (1998, p. 16), ou seja, modos como a sociedade conversa com a sociedade. E segundo o autor, dessa troca, ou conversa, surgem os objetivos comunicacionais, gerando tecnologias midiáticas para ampliar e acelerar as comunicações. José Luiz Braga e Regina Calazans (2001) deixam claro que não são os meios de comunicação que direcionam a sociedade, mas esta quem os determina. Para os autores, a ordem tecnológica da civilização é determinada pela ordem cultural dos significados e valores, evidenciando a importância dos valores culturais de nossas sociedades para uma relação mais humanizada com a tecnologia e, da mesma forma, com os meios de comunicação.
Assim, "o sentido em que se move a tecnologia já não é tanto o domínio da natureza pelas máquinas quanto o desenvolvimento específico da informação e da comunicação do mundo com as imagens" (Vattimo, 1990, p. 95). Dessa forma, é possível pensar a imagem na educação não como uma ilustração da escrita, mas como uma forma de produção de conhecimento. E a partir de uma trama tecida com figuras e discursos — imagens e palavras —, constituir-se-á o que chamamos hoje de "ciências humanas". Martin-Barbero (2000) ressalta a importância de um novo paradigma do pensamento para estabelecer uma nova relação entre o discurso (a lógica) e o visível (a forma).
Na atualidade, o sistema midiático se configura como um conjunto de processos de mediações que vem ampliando e diversificando os modos de interação entre variados "eus" e alteridades com diferentes procedimentos e tecnologias, formando, com o livro e o jornal — já seculares —, um conjunto complexo e diversificado, campo para novas poéticas e para as interações sociais, contextualizadas não apenas dentro de uma relação mídia e usuário, mas também entre setores da sociedade e entre pessoas.
A importância da linguagem como instrumento capaz de desenvolver o pensamento aprofunda-se, em seus aspectos mais amplos, com a apropriação de novas mídias. Estabelece-se um diálogo entre a imagem e o discurso, apesar de, durante muito tempo, em nome da razão, a tradição positivista de nossa educação ter valorizado a linguagem escrita como única forma de legitimar os pensamentos, as ideias, enfim, os saberes, não reconhecendo outros códigos – visual, oral, audiovisual – como formas de leitura e escritura do mundo. Na reinvenção do conhecimento, olhamos o mundo com os olhos do poeta – o arquiteto da linguagem, segundo Décio Pignatari (1988). E "escrevemos com boniteza", como propõe Paulo Freire (1970, p. 201).
A relação dos jovens com as novas tecnologias é, para Martin-Barbero (2000), uma relação de cumplicidade cognitiva e expressiva, pois nos sons, na velocidade, nas imagens e fragmentações, é que os jovens encontram o seu ritmo e o seu idioma. Assistem, hoje, à configuração de uma espacialidade que não se baseia mais nas diferenças entre interior e exterior — espacialidade própria das telas da TV e do computador. O autor chama atenção para o descentramento produzido pela televisão na cena doméstica, ressaltando o fato de que as crianças estão mais próximas do mundo dos adultos e de que isso causa certa desordem nas sequências de aprendizagem: as crianças agora "sabem demais" e vivem coisas que "não são para sua idade" (p. 89).
Ao ser acusada de todos os males que cercam a vida dos jovens, a televisão desvela as transformações sociais da contemporaneidade a partir do deslocamento das fronteiras entre razão e imaginação, saber e informação, natureza e artifício, arte e ciência, saber científico e senso comum. E das representações e práticas sociais, em especial as juvenis, emerge uma nova subjetividade, abrindo espaço para um pensamento que não opõe escola e televisão, educação e comunicação (Maffesoli, 2004).
Se, nos anos 1930, W. Benjamin associava as modificações do aparato perceptivo do transeunte no tráfego da grande urbe com a experiência do espectador de cinema, hoje, as transformações que atravessam o sensorium urbano são experienciadas no espaço doméstico por meio da televisão e do computador. Diferentemente das culturas letradas, nos relatos fragmentados do vídeo, do cinema e das culturas eletrônicas audiovisuais, encontramos uma flexibilidade que permite a articulação de elementos de variados mundos culturais, coexistindo lado a lado com diferentes temporalidades.
Estamos vivenciando um momento marcado por mudanças conceituais e metodológicas que a todo instante nos desafiam a compreender nosso papel como educadores e seres humanos criadores de si próprios e do mundo, numa sociedade permeada por tecnologias, denominada às vezes de sociedade da informação, sociedade do conhecimento ou pós-moderna. Na contemporaneidade, os espaços educativos se deparam com a possibilidade de se apropriarem da cultura midiática para criar novos espaços de interação, nos quais alunos e professores tornam-se coautores na construção de conhecimentos, e de estéticas que implicam o reconhecimento do outro — num acontecimento ético.
Nesse contexto, à educação atribui-se o desafio não só de explorar as possibilidades que as novas tecnologias criaram, mas, parafraseando Paulo Freire, de reconhecer, no universo cultural dos jovens e nas telas audiovisuais que fazem parte do seu cotidiano, novos modos de ler (conhecer) o mundo e de escrevê-lo (transformá-lo). Assim, localizamos a escola como uma importante mediadora sociocultural nos processos de apropriação da linguagem audiovisual e usos de diferentes suportes para criação, expressão e comunicação.

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 Correspndência: Eloiza Gurgel Pires
SCRS 502 bl. B apt.118
70330-520 – Brasília – DF
E-mail: eloizagurgel@uol.com.br
Recebido em 16.03.09
Aprovado em 09.03.10


Eloiza Gurgel Pires, arte-educadora, artista plástica, doutoranda em Educação pela Universidade de Brasília – UnB, é professora da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. Suas pesquisas discutem as novas formas de produção de conhecimento na contemporaneidade a partir das relações entre arte, cultura, novos meios e educação.