Décadas atrás, quando a população crescia rápido demais, foram atribuídas à demografia uma série de problemas sociais e ambientais - mas pouca gente acreditou. Agora, que o crescimento populacional desacelerou, muitos dos efeitos econômicos e sociais dessa desaceleração, preditos há décadas, aconteceram - mas novamente, ninguém fala que é por causa da demografia. Pode ser por causa de qualquer coisa, menos dela. A demografia é tabu.
A explosão demográfica e o alerta do Clube de Roma
Em 1970 e 1972, o Clube de Roma alertou que o crescimento populacional nas taxas da época traria desastrosos efeitos sociais e inclusive ambientais. |
Naquela época, diversas vozes começaram a alertar que o crescimento populacional explosivo era a maior causa daqueles problemas - embora, obviamente, não a única. O ecólogo Paul Ehrlich falou da “ bomba populacional” em 1968. O geógrafo francês Yves Lacoste definiu subdesenvolvimento como “uma situação caracterizada por uma distorção durável (ou uma tendência à distorção) entre um crescimento demográfico relativamente intenso e um aumento relativamente fraco dos recursos de que dispõe a população”. Em 1970 e 1972, o Clube de Roma - um grupo de cientistas e intelectuais reunidos na capital italiana - alertou que o crescimento populacional nas taxas da época traria desastrosos efeitos sociais e inclusive ambientais, por causa da escalada da poluição. A desaceleração do crescimento populacional seria uma condição imprescindível para que os países de terceiro mundo pudessem sair do subdesenvolvimento e resolver seus imensos problemas.
O nascimento do tabu
Os alertas tiveram muito impacto na época, mas foram rapidamente esquecidos. A questão demográfica voltou a ser quase ignorada, varrida para baixo do tapete. Boa parte disso se deveu à demonização da idéia por parte de muito das ciências sociais, que associaram o alerta sobre a explosão demográfica às idéias de Thomas Malthus, do final do século XVIII. Se alguém alguma vez chamar você de “neomalthusiano”, é hora de partir para a briga - esse é um dos piores xingamentos disponíveis no arsenal dos cientistas sociais.
É bem verdade que a obra de Malthus, embora fosse útil para apontar o problema, possuía argumentos matemáticos simplistas. No entanto, seria ingênuo pensar que as idéias dele foram tão enfaticamente rejeitadas por causa de seu conteúdo científico. Na verdade, foram rejeitadas por causa do incômodo com as possíveis soluções. Ninguém conseguia conceber uma solução adequada para estabilizar o crescimento populacional rapidamente numa sociedade democrática, sem ferir alguns de nossos valores mais caros a respeito de direitos humanos. Diante do violento impasse - percepção do problema populacional, mas repulsão com os meios disponíveis para resolvê-los - muita gente preferiu adotar a solução mais simples: ignorar o problema, fingir que ele não existia. Nascia o tabu.
O crescimento populacional se desacelerou quase sozinho
Na grande maioria dos casos, as sociedades reduziram sozinhas seu crescimento populacional, como consequência de mudanças nelas mesmas. |
A exceção, quanto a como se deu o processo, foi a China. Lá, o crescimento populacional foi desacelerado graças a uma rigorosa política governamental de filho único, implantada de forma autoritária, por um governo autoritário. Não concordo com os métodos empregados pela China, nem acho que eles devam servir de modelo para qualquer país. Mas esqueçamos por um momento como a China alcançou a desaceleração, e olhemos por um momento para o que aconteceu. O crescimento desacelerou muito mais rápido na China que na maior parte dos outros países. Em algumas décadas a população chinesa deixou de crescer centenas de milhões de pessoas - alguns Brasis - que teriam sido acrescentados à sua população se as taxas de 1960 tivessem sido mantidas. De repente a China - surpresa, surpresa - se torna uma das maiores potências mundiais!
Surpresa chongas de pitibiriba. O Clube de Roma tinha cantado a pedra quarenta anos atrás!
O bônus demográfico nas versões chinesa e brasileira
O que está acontecendo, em grande parte, é que a China está passando por uma fase conhecida como bônus demográfico. Esta fase é típica de países que desaceleraram seu crescimento populacional recentemente. A população já não tem uma proporção de jovens tão grande quanto tinha décadas atrás. Por outro lado, como a desaceleração ainda é relativamente recente, a proporção de idosos também não é tão alta. Com relativamente poucas crianças e poucos idosos, a sociedade pela primeira vez em muito tempo consegue lidar melhor com as demandas da educação, saúde, e por aí vai. Além disso, maior parte da população está em plena idade produtiva. Numa população assim, é difícil que a renda per capita não suba.
A população chinesa foi quase estabilizada, como se dizia décadas atrás que era o passo crucial para a China conseguir se desenvolver. Pouco tempo depois, embora ainda esteja longe de ser um país rico, verifica-se que ocorreram imensos avanços econômicos e sociais, e a China torna-se potência mundial. Coincidência? Pode ter certeza que nem um pouquinho. Mas mesmo agora, ninguém fala da demografia! Fala-se de economia, circunstâncias de mercado, esquecendo-se do bônus demográfico, que certamente não é a única causa, mas é pelo menos uma das causas principais do “milagre chinês”. Pobre demografia! Nem quando ela faz coisas boas alguém lembra dela.
É óbvio que o Brasil, assim como os demais emergentes, está passando pelo bônus demográfico agora, e grande parte do nosso bom momento econômico é devido a isso. |
No entanto, no Brasil também quase não se fala em bônus demográfico. Nossos governantes se gabam de, com suas políticas sociais, ter tirado milhões de famílias da pobreza. Porém, a pobreza é definida como renda familar per capita abaixo de um certo valor. Como os filhos de modo geral não geram renda, é óbvio que a mera diminuição do número médio de filhos por família puxa a renda familiar per capita de milhões de famílias para acima da linha da pobreza. Numa sociedade com a fertilidade caindo rapidamente, isso dificilmente teria como não ocorrer, mesmo na ausência de qualquer política social. Mas que político já explicou isso? Eles preferem faturar às custas do bônus demográfico como se fôsse um resultado de suas próprias atuações.
Então os problemas demográficos estão resolvidos?
Neste ponto poderíamos pensar que com a desaceleração do crescimento da população mundial, e vários países em situação de bônus demográfico – duas boas notícias sem dúvida - a questão populacional estaria perdendo sua importância. Mas essse seria um imenso e trágico erro. A situação atual não nos dá, de forma nenhuma, razão para complacência.
Hoje o problema do crescimento rápido da população mundial está sendo substituído por outro, talvez até mais grave: o da superpopulação em si. Gostemos ou não de perceber isso, já vivemos em um mundo superpovoado. Somos sete bilhões, e a desaceleração em curso não é rápida o suficiente para estabilizar a população global antes de chegarmos a nove bilhões. Agora imagine esses bilhões de pessoas multiplicados por uma cultura consumista e desperdiçadora, e o efeito disso é que o planeta está sendo submetido a uma pressão tão gigantesca que não pode aguentar por muito mais tempo. As consequências da dobradinha desastrosa de superpopulação e superconsumo se tornam mais óbvias a cada dia, na perda de biodiversidade, nas mudanças climáticas, e no colapso de serviços ambientais dos quais precisamos para uma qualidade de vida mínima. Hoje é a natureza que está dando o alarme, mas não se iluda que a prosperidade econômica possa estar dissociada das questões ambientais mesmo a curto prazo.
Além disso, cabe lembrar que há a conta a ser paga pelo bônus demográfico: o envelhecimento da população nas próximas gerações. Uma baixa fertilidade hoje significa uma população com uma alta proporção de idosos amanhã, e isso é um gigantesco problema para as economias, por exemplo para os sistemas de previdência social. Não é à toa que as economias de países com populações envelhecidas - especialmente os países europeus e o Japão - perderam todo seu vigor e hoje tem imensas dificuldades para se manter competitivos diante dos emergentes. Como vamos sair disso não é simples, mas uma coisa é certa: vamos ter que olhar para a demografia com muita atenção.
Hora de rever os conceitos
Nesse ponto, é importante lembrar que as mudanças demográficas pelas quais as populações têm passado certamente não são as únicas causas de fenômenos tão complexos como miséria, surtos de prosperidade ou perda de competitividade internacional, em um mundo tão complexo. Mas a demografia tem fornecido explicações poderosas, que nos ajudam muitíssimo a entender como o mundo se tornou o que é, as transformações pelas quais ele está passando, e como podemos lidar com problemas previsíveis no futuro. Não é sábio que continuemos a ter barreiras contra uma visão tão útil do mundo. Se você acha que nunca é por causa da demografia, então é hora de rever seus conceitos. Nos livrarmos desse tabu nos abre para percepções do mundo das quais nesse momento, mais que nunca, precisamos.
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http://www.oeco.org.br/fernando-fernandez
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